A ÉGUA PAMPA

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 14 de Agosto, 2020 - Atualizado em 14 de Agosto, 2020

A ÉGUA PAMPA

 

Eram os idos de setenta, nas estradas das cercanias da Fazendinha, de Candeias, do Cajueiro, da Terra Vermelha, da Igreja Velha, do Canário e do Pé do Veado. As estradas carroçais, que passavam boa parte do tempo enlameadas, sob os efeitos do brejo de bons e repetidos invernos, eram palco do desfile elegante da besta pampa que parecia deslizar na superfície esburacada, empoeirada ou de puro lamaçal.

O animal de estatura distinta, sabia de cor o caminho de casa para todas as bodegas da região: Pombinho, João e Zé de Sabino, Paula irmã de Amélia de Tonho Gancho, Tutu, Vicente de Corcino, Aurélio de Nina (e depois Maninho), Adrião, Tonho de Malaquia e Zé Crispim, sem olvidar Paulo de Servina e Zequinha Machado, que tinham pequenos pontos de pé de brigas regadas a imburana, quixabeira, louro, quina quina e casca de marmeleiro. No Congo, Zeca Cajueiro, e, no Cajueiro, Chico, irmão de Zeca, mantinham um balcão para servirem a malvada branquinha, açúcar e sabão, fumo e querosene ou azeite. Onde quer que existisse um local com uma garrafa e um copo de dose, daqueles cujo fundo é excessivamente espesso, a égua pampa esbarrava. Já, ao longe, a quadrúpede parecia farejar o odor típico da ilustre filha do engenho, e começava seu movimento de frenagem, desacelerando lentamente até chegar à porta do estabelecimento.

Se era cedo, antes das nove, o proprietário do animal dava conta de apear, tomar uns dois goles, jogar conversa fora, arranjar umas encrencas para, em seguida, tocar a viagem em frente ate parar noutro pé de briga. Se fosse à tarde, alguém trazia a malvada ate o cavaleiro. Difícil mesmo era saber onde ele começava o dia e onde ele o encerrava. De bodega em bodega, o animal dava um giro completo, com parada cativa em todos os lugares em que era possível levantar o copo.

Quando o sol despencava, o animal continuava, solenemente seu desfile, com o montador já se enlevando para um lado ou para o outro, à moda de um pêndalo, movido pela inércia que não lhe permite fixar-se num único ponto. Dizem os notívagos que era comum encontrar montador e animal, às dez da noite, quando ele já se apresentava curvado sobre o dorso da égua, sem qualquer condição de saber onde estava, de reconhecer os passantes, ou de saber aonde ia. A besta avermelhada, com belíssimas marcas brancas, que a distiguiam dentre as demais, conduzia-o fiel e servilmente ao destino. No terreiro do casebre onde vivia, por um milagre, ele descia, conforme contam os mais criativos, com uma ajudinha do bendito animal: a égua cuidava de se deitar, deixando os pés de seu possuidor sobre o chão empoeirado do terreiro. Dali para dentro de casa era por conta de sua santa companheira, que só se deitava após ajudá-lo a entrar e fechar a porta.

Uma das curiosidades é o fato de a égua andar sempre elegante, bem nutrida e com belíssima passada que a tornava o animal mais cobiçado da redondeza. Outra boa suspeita era a de saber como o tal consumidor da destilada arranjava dinheiro para pagar as inúmeras doses de pinga, já que não trabalhava dia algum. Certamente, sua esposa se desvelava, na malhada, sob sol causticante ou sob chuvas intensas, para conseguir manter o provimento da família. Ela o bancava, apesar da fama de rico que o beberrão soerguia, ostentando ser neto de grande fazendeiro endinheirado.

Outra grande indagação era sobre a roupa do dono da pampa. Sempre limpa, com o vinco definido, como se fora passada há poucos instantes. Ainda, o chapéu Ramezzoni de aba curta não se desgarrava de sua cabeça, mesmo após inserto em infeliz manguaça. Animal e dono, elegantemente bem apresentados, cultivaram até a morte dele feliz convívio, varando madrugadas e trilhas com o fito de tornar menos sofrida a vida daquele que se escondia na amargura do álcool, para afogar as mágoas da vida. Um dia, a porta do casebre não se abriu; a égua não foi selada, e nunca mais deslizou pelas estradas da região.

Um tombo infeliz, que pinga alguma pode ocasionar, tombo do sono irremediável, deitou o montador para sempre. Acabou-se a belíssima passagem daquele animal que acompanhou, ao longe, a última viagem do beberrão até o Cemitério do Rumo. Sem pinga, sem o converseiro dos bebuns e sem seu nobre proprietário, a pampa parece ter-se tornado heremita, nas hermidas reclusas da alma entristecida que nunca mais permitiram avistá-la. Para sempre, escondeu-se a égua pampa.

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