AREIA NO FEIJÃO: COISA DO OUTRO MUNDO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 16 de Agosto, 2020 - Atualizado em 16 de Agosto, 2020

AREIA NO FEIJÃO: COISA DO OUTRO MUNDO

Quase no tempo do carrancismo, quando as dificuldades financeiras assolavam, muito mais do que atualmente, no Cajueiro, vivia uma certa família de muitos integrantes. Era comum à época um número grandioso de filhos, porque eles nasciam naturalmente, sem qualquer meio por que se pudesse evitá-los. "Comadre, estou prenha outra vez", dizia uma irmã à outra, à prima ou à cunhada. Fazendo "coisa feia", poderia se preparar para as tonturas ou os enjoos de costume.

Pois bem, a família cresceu e os filhos foram-se casando e permanecendo na terra, dividida por linhas imaginárias, apenas com um toco de braúna ou de jurema, nos pontos limítrofes. Era fácil transitar entre as malhadas, o que facilitava a mútua ajuda, em dias de feira, quando homem e mulher se botavam para as compras, e os filhos pequenos ficavam com os vizinhos primos.

Eleotério, irmão de Germano, foi à vila, em companhia de Berenice, sua esposa, deixando os filhos rapazotes e as filhas, pondo-se mocinhas, em casa, para cuidarem dos bichos, dos terreiros e do feijão. Naquela quadra, não havia qualquer assistência social, e os pobres, doentes ou inválidos, valiam-se da caridade alheia, que lhes favorecia com uma mão cheia de farinha, de feijão, ou um "cozinhado” de aipim. Por vezes, os pedintes apareciam, mas durante a semana, pois, aos sábados, pediam à entrada da feira. Deixar os filhos em casa não oferecia qualquer perigo.

Quase todos do Cajueiro tinham por almoço, feijão cozinho na água e sal, farinha de mandioca e um pedacinho de carne moqueada ou jabá assada. As mulheres eram criativas e reversavam as misturas diárias: segunda-feira, feijão, farinha e carne; terça, farinha, um pedacinho diminuto de carne e feijão...

Leontina, filha mais nova de Eleotério, sempre foi criatura desgovernada. Seu tio paterno, Germano, dizia que ela tinha a bola esquipada. Estava sempre fazendo o errado, onde quer que estivesse: era bispona, faladeira, intrometida, preguiçosa e enganjenta. Aonde chegava, arrumava desarranjo familiar, pois vivia de infuca, levando e trazendo, com boa dose de aumento em tudo que levasse ou trouxesse.

Naquele sábado, ela já com oito ou nove anos, desejou acompanhar os pais na andança pela vila, mas foi impedida. A montaria estava com lotação completa, porque Dorvina, sua irmã mais velha, mandou encomenda de renda de bilros para duas senhoras distintas na cidade. A anca estava sustentando Berenice; o cabeçote, com as rendas, e os caçuás repletos de abóboras e ararutas. Leontina ficou enraivada, ameaçou tirar a roupa, começou a sapatear, destilando todo o veneno que uma criatura pueril seria capaz de produzir, acumular e expelir no alvo certo. Se pai, sempre muito bravo, inquinou-a a aquietar-se, sob a ameaça de manguá. Sossegou o facho, mas não se deu por vencida.

Pelas quatro da tarde, quando Berenice e Eleotério chegaram da feira, e estando a carne tratada, com os mantimentos na dispensa, o toucinho no gancho, ao lado da posta de jabá, foram almoçar. A fome parecia disposta a pôr fim nas forças da rapaziada. Não havia manga, nem jaca, nem outra fruta que fosse capaz de enganar o bucho até aquela hora. Nem coco seco comeram. Passaram o dia com a farofa d'água que comeram por volta das sete e meia. De lá para cá, somente água do pote. Nem araçá encontraram. As fruteiras estavam solteiras.

Cada um recebeu o prato de feijão, na quantia exata, já calculada pela mãe zelosa, a fim de não deixarem sobras. Guilhermino, o mais velho, que estava limpando bamburral o dia inteiro, já sentia o corpo trêmulo, a vista escurecer; era a fome apertando sem dó nem piedade. Ao ver o prato de feijão, deitou farinha, mexeu, e encaminhou o vexado bocado. "Arre égua! Tem areia na farinha ou no feijão"! O prato de todos estava assim. Uma panela inteira de feijão foi parar no comedor das galinhas. Ligeiramente, Berenice fez uma farofa d'água com ovo, o que era por eles chamado escafado (escalfado). Todos comeram e se satisfizeram.

Rufina, a mocinha que se encarregara de botar sentido no feijão, foi xingada, repreendida até os dias atuais. Não foi capaz de explicar a razão da areia. Quando tirou o feijão da barrica, deitou-o numa urupemba, biatou-o como de costume, e não havia areia. A panela de barro não se decompôs, e nem seria sua argila semelhante à areia lavada que, por um encantamento, foi estragar o retardado almoço.

Dias se passaram, e a cena se repetiu, em dia de semana, quando a malhada retirava as forças dos bravos lavradores. Nesse dia, Berenice assustou-se, porque quem tomou conta da cozinha fora ela, com o zelo de sempre. Como, então, haver areia no feijão? Mandou chamar uma benzedeira, no Pamandu, para retirar o encantamento do outro mundo. Só poderia ser "coisa feita" (feitiço).

À noite, Eleotério foi à casa de Germano, seu irmão, para brincarem de dominó. Era a única diversão deles: dominó e um trago de pinga. Eleotério não se aguentou, e desabafou com Germano. Deu quinhentos réis à benzedeira, uma fortuna, para ver se o mal sairia de sua cozinha. O medo era tamanho, que as meninas não ficavam sozinhas na cozinha, um minuto só. Toda a família estava assustada. Daquele dia em diante, quase ninguém dormia, pois escutavam-se vozes, mugidos de bichos estranhos, luzernas nos telhados, gritos apavorantes...

Um filho de Germano, Antônio, combinou com o irmão Herundino de, escondidos, vigiarem a cozinha do tio. Uma assombração colocava os longos cabelos para a frente, encobrindo todo o rosto, acendia o candeeiro, e saia de rede em rede, assustando os filhos do casal. Quando gritavam e o pai acordava, para pôr fim à angústia, não via ninguém, senão os filhos deitados nas redes. Uns dormindo e outros assustados. A vida naquela casa se tornou um inferno. Passaram-se meses assim.

Numa quarta-feira de sol, Leontina, vendo que sua mãe foi pôr a roupa na cerca de arame, para secar, apanhou uma cuia de areia e começou a despejá-la na panela de feijão, quando foi flagrada por seus primos Antônio e Herundino. Aos gritos dela, todos correram ao encontro. O flagrante estava consumado: Leontina, em cima de um tamborete, com a cuia de areia já pela metade em suas mãos. Não tinha como fugir, pois os primos estavam com dois cipós de goiabeira, a ameaçá-la. Desde aquele dia, cessaram-se as assombrações e a areia no feijão. Leontina, entretanto, nunca mais dirigiu a palavra aos primos aos quais apodou de "arubus mancos".

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