OBRIGADO PAPAI NOEL

Por Manoel Moacir

Redação, 20 de Dezembro , 2019 - Atualizado em 20 de Dezembro, 2019

Papai Noel, na Finlândia ou na Lapônia onderecebe os imaginários pedidos dos presentesnatalinos, o sol dorme e acorda muito tarde; diferente daqui, onde ele some e levanta cedo. Ai tem frio, vento e chuva. Aqui é quente, úmido, e tem seca e “cerca”. O suor aqui corre no corpo, ai se escondenos odores. Aqui, nos tristes trópicos, abaixo da linha do equador, o Natal é apreciado pela atmosfera europeia: a neve, a importada canção “noite feliz”, o pinheiro, a minoria de alvos, a ceia com chester e panetone, e o gordo e branco Papai Noel. Deveria serno sol ardente, no forró, na maioria afro descendente, na mangabeira e na ceia com carne do sol e farinhade mandioca. Perdoe a minha intimidade, de chamar de você. Como um “bom velhinho”, vai dizer: rô, rô, rô.

Você não conhece a realidade do meu país. Ele não está na sua agenda. O Brasil, não é visível aos olhos do mundo. Aqui, existem dois “Brasis”. Um “Brasil-Oficial”, da Corte, dos brancos, endinheirados,indiferentes e encastelados nos privilégios. E outro“Brasil-Real”, da Província, dos pobres, negros, desempregados, encarcerados e distantes dos valores elementares da civilização. A diferença entre esses dois “Brasis”, é abismal, você não imagina o tamanho da desigualdade. Qual desses você conhece? Você vem mesmo nesse Natal? Você não tem medo de assalto e bala perdida? No ano passado, aconteceram por aqui sessenta e cinco mil homicídios. Papai Noel fale a verdade, existem dois “Papais Noel”? Um genérico para os pobres edesvalidos que nunca aparece, outro original e frequente para os ricos e poderosos. Aqui na “Terra de Santa Cruz”, sob as bênçãos cristãs, existemmilhões de crianças pobres, desnutridas e abandonadas que você nunca atendeu; apartadasdas ricas, educadas, nutridas, protegidas e visitadas por você. Não acredito que você irá “distribuir presentes” por aqui. Imagine subir os morros e favelas do Rio de Janeiro, que a cada hora tem um tiroteio.

Estou escrevendo de Rio Real, na Bahia, onde o Brasil nasceu. Você ouviu falar da minha cidade? Estou seguro que não. Ela existe no mapa de grande escala, numa divisa gêmea entre a Bahia e Sergipe.Desde o século passado, lhe escrevo todos os Natais, não faltou um. Você nunca respondeu. Coloquei todas as noites de Natal, o “sapatinho embaixo da cama” e nunca deixou um presente.Tenho certeza que também não foi a Rio Real, aantiga Barracão, deve ter ficado em Brasília, dos poderes, catedrais e palácios.

Papai Noel, não sou mais uma criança, cresci, sobrevivi e envelheci. A educação, me fez entenderque as “injustiças não são divinas, mas humanas”. Por obra da pós-materialidade, furei o cerco rochosoda pobreza, o que não aconteceu com a maioria dos meus conterrâneos, alguns nem chegaram a idade adulta, morreram no caminho, pelas doenças dospobres, do alcoolismo, do abandono, da violência e desilusões. Viajei pelo mundo, conheci muita coisabonita e feia, alegre e triste, naturais e sobrenaturais e gente generosa e egoísta; mas voltei ao “aconchego nordestino”. Jamais esqueci de Rio Real,pois “ele está comigo onde quer que eu esteja”. Parece uma obsessão do outro mundo.

Passado mais de meio século, a minha terra continua pobre e violenta, os esgotos em enxurradasescorrem nas ruas, e a morte violenta é anunciada todos os dias. Continua esperançosa por dias melhores que demora a chegar, aguardada pelos milagres da padroeira, e pela pacífica paciência eesperança que nunca morrem. A desigualdade por aqui, é acolhida com naturalidade, sem indignação. Papai Noel, por que você mudou a cor das suas vestes? Antes, eram verdes, depois ficaram vermelhas, quando a Coca-Cola realizou uma grande campanha publicitária usando um Papai Noel. Por que você fez isso?

Espero que essa carta chegue até você. Por favor, responda. Não estou pedindo para mim. Ospedidos são muitos, mas não pesam, não tem volumes e não precisam transportar nas costas e nem entrar pelas chaminés. Em Rio Real não tem indústrias, tem desemprego e gente trabalhadora. Você aparenta ser rico e poderoso, mas não trabalha, não envelhece e nem morre. Viaja mundo afora, do Polo Norte ao Sul e do Ocidente ao Oriente, distribuindo presentes. Não vou lhe perguntar quem lhe patrocina, prefiro continuar iludido. Você é branco, não tem inimigos, é encantador e hipnotizador de ilusões. Não existe Papai Noel negro? Por favor, me atenda, não decepcione, pode ser o último pedido, caminho para as derradeiras décadas das múltiplasexistências.

Papai Noel, repito, o meu pedido não é individual, nem material. Você está com dificuldade de escutar, é compreensível, são as restrições da idade. Não peço dinheiro, empregos, viagens, cargos, brinquedos, roupas e vantagens pessoais e familiares. Não peço para mim, mas para o meu País, o meu Estado, a minha cidade, em especial, para os conterrâneos simples e carentes, onde os seuspedidos não chegam até você. Peço comida para os que tem fome, água para os que tem sede, saúde para os doentes, emprego para os desempregados,acolhimento para as crianças abandonadas, amparo para os velhos esquecidos, liberdade para os oprimidos, justiça para os encarcerados, ética e moralpara a nossa gente. Você pode não acreditar, mas aqui falta água para os humanos e animais, e a fome ataca milhões de brasileiros. Em breve, o Brasil será o maior produtor e exportador mundial de alimentos e possui as maiores reservas de água do planeta. Você entende essas contradições? Papai Noel, você faz alguma caridade, ou somente distribui presentes? Se não faz, se cuide, ainda há tempo, pois “fora da caridade não há salvação”. “Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim”.

 

Papai Noel, como nunca o encontrei, jamaisrespondeu as minhas cartas e nem me visitou, entendo que você não existe. És uma lenda construída no tempo por interesses comerciais. Um mito inalcançável pelas crianças pobres que não podem comprar a alegria natalina. Por favor, não negue e nem reproduza a miséria entre os desiguais, alimentando um determinismo obsequioso e inexistente de igualdade, manipulado por presentes, fantasias e ilusões em um único dia do ano. Vocêsobrevive nos sonhos de crianças pobres e ingênuas,que em sua maioria não chegam a idade adulta, e nem são educadas para alcançar a maturidade eentender a magia da verdade natalina expressa no nascimento do espírito protetor do planeta, “em cujas mãos se conservam as rédeas diretoras da vida na coletividade e (igualdade, ao pregar) amai o próximo como a si mesmo”. Papai Noel, você me enganou, mas obrigado por descobrir o sentido do verdadeiroNatal, ainda que tardiamente. Rio Real, Bahia, dezembro de 2019.

 

Manoel Moacir Costa Macêdo

Engenheiro Agrônomo, Advogado e PhD pela University of Sussex, Brigthon, Inglaterra


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