ZÉ DEVOTO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Peixoto, 13 de Março , 2020 - Atualizado em 13 de Março, 2020

ZÉ DEVOTO

Não sei quem era e de onde era. Conheci-o, em visita à minha avó materna, no Pé do Veado, quando eu contava quatro ou cinco anos. Numa manhã de domingo, após o pirão de osso de correr, ritual matinal dos domingos, quando todos já estavam fartos, e quando já se completara o tempo do “descanso” para se poder tomar água, ele apareceu.

Um senhorzinho branco, com chapéu de palha, camisa de mangas longas, socada, encurvado para a frente, à guisa de um quase anzol, surgiu no terreiro, com um punhado de rosas, que trazia para enfeitar o oratório de minha avó. Cumprimentou os adultos, meneou para as crianças e perguntou por sua velha comadre, ao que mia tia responder que estaria na cozinha, encomendando os afazeres do almoço.

Sentou-se num banco, debaixo do telheiro e, com voz fraca e mansa, puxou conversa com minha tia. Fui chamar minha avó. O rádio de marca NORDSON, num enorme armário, acabara de transmitir a Missa da Igreja São Salvador, sob a presidência de Dom Luciano Cabral Duarte, então arcebispo. Minha avó fez sinal para que minha tia o desligasse. “As pilhas estão pela hora da morte... um carrego de pilha tá valendo uma quarta de farinha, cumpade! Onde já se viu isso? E Cumade tá miozinha, tá, tá, coitada? É uma incramidade”! (Calamidade!).

Foi a primeira vez que o vi tive a impressão de estar diante de um santo: ele falava com tranquilidade, voz ponderada, gestos comedidos, roupa engomada, alpercatas limpinhas, e trouxe flores para os santos. Era um devoto.

No sábado, seguinte, ao entrar na feira com o meu pai, estava o velhinho encurvado, com um monte de plantas e de flores à venda, bem em frente ao café de Cajuzinha. Meu me recomendou para não falar em ‘devoto”, pois era alcunha da qual não gostava.

Embora demonstrasse tamanha admiração pelas flores, reverências aos santos e refinada educação, ao conversar, não gostava de assim ser chamado. Certamente, alguém o desdenhou pelo modo com que tratava as plantas e as flores e debochava do pobre homem, fazendo-o rejeitar o apodo que lhe fora imputado há anos.

Certamente, não guardava técnicas modernas, mas cultivava as flores com devotada paixão e com um carinho especialíssimo que o distinguia dos demais moradores da região. Tornou-se um poeta da vida e do amor, pela mistura de cores e de bons odores que suas mimosas plantas exibiam sorridentes.

Quando cresci, dei-me conta de que ele era vizinho de sítio da minha avó. Não conheço todos os seus familiares, mas devem existir muitos e devem ostentar muita satisfação de terem tido um pai, avô, tio, bisavô do naipe de seu Zé Devoto, um homem à frente do seu tempo.

 Em tempos de rudeza extremada, um homem do campo cultivar flores e leva-las à feira para vender era se sentir futurista e guardião dos bons costumes de preservar a Natureza. São sei se, deveras, era devoto, mas devotava um amor extremado às plantas e era muito bem quisto por meus familiares do Pé do Veado. Mesmo rejeitando o apelido, fazia jus ao cognome, por sua entrega ao mundo fantástico das flores.


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