Fiz a primeira comunhão aos sete anos, sob a égide do Concílio de Trento. A primeira comunhão era antecedida de aulas de catecismo. Duas passagens ficaram na memória: “Foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos, ao terceiro dia, ressurgiu dos mortos” e a mais polêmica, donde há de vir julgar os vivos e os mortos.” O Juízo Final!
Acho que me assuntei como gente aos sete anos. Nunca soube os motivos, mamãe fez uma promessa de realizar a minha primeira comunhão aos sete anos. No dia exato, era uma promessa. Caiu numa segunda-feira, igreja esvaziada, dia chuvoso, mas a promessa foi cumprida.
As sete da manhã, o primogênito de Dona Lourdes e Seu Elpídio estava pronto, roupinha de anjo, uma vela comprida na mão, ansioso, na primeira fila de bancos, na matriz de Santo Antônio e Almas de Itabaiana. Foi a primeira vez que vesti uma calça comprida e calcei sapatos.
Fui empurrado para dentro da Igreja. Depois fui tirar esse retrato, nos estúdios de Joãozinho Retratista, nos fundos de uma relojoaria.
As cerimônias da igreja ainda eram em latim. O padre celebrava de costa para os fiéis e os santos faziam milagres. A cheirosa fumaça dos turíbulos é a minha melhor lembrança.
Itabaiana transpirava a contra-reforma. As resoluções do Concílio de Trento (1554 – 1563) eram fielmente apreendidas e observadas. O pecado era um peso que amedrontava. O anjo da guarda não dormia.
Tudo girava em torno da igreja católica: festas, procissões, batizados e casamentos. A missa do galo era o centro do Natal. No sábado de aleluia, rasgavam-se as coberturas roxas dos santos, um acontecimento esperado com ansiedade.
A missa do sábado de aleluia, transcorria com as luzes apagadas, no escuro. Se o padre não encontrasse uma certa passagem no missal, era o prenúncio do fim do mundo. Nunca entendi os motivos para se procurar essa passagem no escuro, nem por que, sendo tão importante, não procuravam antes e já deixavam marcado.
As modernices do Concílio Vaticano II (dezembro de 1965) só apareceram quando eu já tinha onze anos. E não pensem que chegou em Itabaiana no outro dia. Essa estória de que Deus é amor e perdoa todo mundo, demorou a entrar na cabeça do povo.
As Santas Missões apontavam a eminência do fogo eterno, e os nossos frades pregavam a paz para os justos, a misericórdia para os aflitos e o fogo eterno para os ímpios. O castigo para os maus seria severo. Era esse medo que continha o rebanho.
Em Itabaiana, a igreja católica era soberana.
Os crentes limitavam-se aos membros da igreja de Dona Eulina Nunes, poucos, mas descentes e respeitados. As religiões africanas estavam a cargo de dois ou três macumbeiros amadores de final de semana.
Os terreiros de João de Filipinho, Cidália e Hosano, onde se batia o tambor. Eu achava tudo meio misterioso. Lá em casa meu pai se pelava de medo de mãe Bilina, ialorixá do Terreiro Santa Bárbara Virgem, em Laranjeiras, onde ele vendia rede de dormir, na feira. Papai andava com os bolsos cheios de pregos, para evitar coisas feitas.
Fui guiado pelo Concílio de Trento, pelas aulas de catecismo de mamãe, filha de Maria. Aprendi a ler com os livros de cordéis de meu avô, Totonho de Bernardinho. Já cheguei na escola taludo, e não compreendi a sua serventia.
Da escola só prestava a merenda (um achocolatado quente com bolacha) e o recreio. Ler eu já sabia. Se naquele tempo já tivessem inventado o “bullying” eu tinha me lascado.
Fui aluno gratuito na escola do Padre. Fizeram essa concessão aos filhos dos sócios do “Círculo Operário”, uma organização da igreja para combater o comunismo.
A discriminação era total, até carregar água para molhar uma quadra de areia eu carreguei. Na época, eu ignorava essas discriminações, ou melhor, não percebia. Segundo um amigo psicanalista, por isso, me tornei cascudo. Feito a formão!
O Padre Everaldo (bode cheiroso), não perdia a oportunidade de passar em minha cara que eu não pagava. Pensam que tive um trauma psicológico? Porra nenhuma, passei para a ofensiva e quando tinha oportunidade mandava todos tomar no (…).
A vida não seria um passeio, fiquei sabendo muito cedo. Aprendi a entrar em bolas divididas. Eu só temia os castigos de Deus!
Rezei muito, nos últimos dias do longo padecimento do Papa João XXIII, morto em junho de 1963, com um câncer de estômago. Eu tinha nove anos, mas acompanhei como adulto.
Os sinos da Matriz de Santo Antônio e Almas tocavam sem parar, uma sinfonia fúnebre. Dia e noite. Eu morava no Beco Novo, no fundo da igreja. Achava que os sinos estavam dentro da minha casa e da minha cabeça.
Foi o meu primeiro velório, aos 9 anos, um velório Papal!
Antonio Samarone – médico sanitarista.