Domingos Pascoal
Uma das melhores coisas que temos no mundo são os amigos. Há quem chegue a afirmar que, em certos casos, os amigos são melhores, até mesmo, do que os próprios irmãos. E justificam com argumentos fortíssimos. Dizem que os irmãos a gente não escolhe, nos são impostos pela conveniência de nascerem do mesmo pai e da mesma mãe. Enquanto os amigos nós os escolhemos.
É como dizem por aí, “um bom amigo vale ouro”. O reencontro com um amigo é sempre uma oportunidade muito gratificante. Rever um velho camarada de infância, depois de certo tempo, é como voltar ao passado e visitar aqueles locais de saudade, porque quase sempre se fala daquela fase da vida, das travessuras ou brincadeiras que se fazia quando quase sempre se falava, sobre os sonhos, sobre as pessoas, sobre as namoradas, amigos, familiares, vizinhos… Enfim, o reencontro nos transporta para aqueles desvãos de saudade. Ah, como éramos felizes e não sabíamos!
Há pouco passei por uma situação muito prazerosa, não chegou a ser um reencontro, pois este amigo está há mais de dois mil quilômetros de distância. Mas graças à tecnologia moderna, um dia desses deu saudade e, foi que me lembrei de que talvez conseguisse, através desta tecnologia, o número do seu telefone. Pesquisei e, surpreendentemente, apareceu tanto o seu contato e seu endereço completo. Fiquei tão alegre que, imediatamente, liguei. Foi uma belíssima surpresa para ele e para mim.
Atendeu uma Jovem:
– Aló?
– Por favor, moça, tudo bem?
– Num sou moça não, senhor, tenho só 8 anos. Mas está tudo bem!
– Por acaso esta é a casa de João?
– É Não, é a casa do senhor Aragão.
– Do João Aragão?
– É! Quem quer falar com ele?
– Diga-lhe que é Domingos Pascoal, um amigo de infância lá do Cantodoamaistempo.
– Quêêê? Cantodoamaistempo? O que é isso?
– É o local onde seu pai nasceu amiga!
– Né meu pai não, moço! É meu vô.
– Desculpe-me, você pode chamá-lo?
– Vô é um tal de Mingo Castro Alves, dum lugar de nome estranho.
– Aló?!
Reconheci a voz, mesmo depois de mais de cinquenta anos e nunca ter falado, antes, com ele por telefone.
No Cantodoamistempo, naquela época, nem sabíamos o que era um telefone. O que usávamos para brincar e conversar, eram dois cacos de cabaça que enfiávamos num cordão e, falávamos, um para o outro com aquele gogó de cuia no ouvido. O interessante é que escutávamos bem direitinho.
– Aló, amigo, tudo bem? É Domingos Pascoal, seu amigo de infância, lembra de mim?
Breve e longo silencio, parece que não reconheceu, de imediato, a minha voz. Ou, se reconheceu se emocionou e não conseguiu responder de imediato, demorou, pensei até que tinha desligado. Deu para perceber, que houve um impacto, um momento de muita emoção e surpresa. Também, não era para menos, a última vez que nos falamos foi quando ele viajou para o Rio de Janeiro em 1967, tínhamos, à época, 17 anos.
Mas, não, não havia desligado. Logo em seguida, com a voz embargada disse:
– É o Domingo da mãe Lídia?
Ele é meu irmão de leite, e sempre comeu o plural do meu nome.
– É sim, amigo, tudo bem?
Passado o momento da emoção do reencontro, começamos a falar sobre a vida, os nossos pais, irmãos, amigos e também sobre nossas famílias atuais, sobre nossas esposas, filhos, nossas profissões, até que começamos a rememorar coisas daquela nossa infância despreocupada e feliz, bem como da nossa buliçosa adolescência, dos projetos, dos sonhos… Falamos das namoradas, da escola, das missas em latim, das bodegas, dos picolés de coalhada espetados num palito de fósforo usado, e congelados numa geladeira kelvinator a querosene, do Sebastião Rola, a única da cidade. E, nesta desfolhar de lembranças, meu amigo relembrou uma coisa que, na verdade, já havia esquecido.
E, todo este preâmbulo que fiz foi para contar, exatamente, esta historinha, por ele lembrada, naquele momento, e que, hoje narrada, parece inacreditável. Mas, aconteceu. Espero que não se aborreçam comigo e, por favor, leiam.
Foi o seguinte: quando meninote, o meu sonho era ser padre. Aliás, eu não sei se este sonho era meu ou dos meus pais! Entrar no Seminário era o que mais queríamos, eu e minha família. Eu sonhava usar aquela batina de seminarista e chegar no Cantodoamaistempo todo de preto!
No mínimo, duas tentativas foram feitas. Porém, sempre esbarrávamos num detalhe essencial: a falta de dinheiro para comprar o enxoval e pagar algumas taxas de admissão e permanência.
Minha Mãe e eu, fizemos as tentativas, se não me engano, nos anos de 63 e 64, mas, todas as vezes que íamos, havia sempre algo que nossos parcos recursos não alcançavam o valor necessário.
Na última tentativa, acordamos cedo, fomos ao “cacimbão”, tomamos banho, vestimos as nossas melhores roupas, partimos a pé para Groaíras e 6.00h, estávamos na carroceria do caminhão do Newtinha, rumo à cidade de Sobral, centro econômico e cultural da região, naquele tempo e, hoje ainda, onde ficava o Seminário.
Chegando lá, entramos e, no balcãozinho, depois da explicação do padre que nos recebeu, percebemos que as “economias” que tínhamos eram infinitamente inferiores ao necessário e que, mais uma vez, não ia dar certo.
Todavia, já que estávamos ali, colhemos todas as informações. Inclusive recebemos uma relação dos objetos que o candidato obrigatoriamente teríamos que apresentar para se inscrever. No documento, constando alguns regulamentos, estava a proibitiva, para nós, lista, do que era necessário trazer como enxoval, estava escrito, se não me falha a memória: pijamas, lençol, cuecas, fronhas, toalhas, escova, creme dental, pente… Tudo coisa, que as pessoas da cidade certamente usavam. Porque, lá onde morávamos, nós sequer sabíamos o que era. Foi aí que um objeto citado naquela lista me chamou a atenção. Fiquei calado para ver se alguém dava uma pista para eu descobrir o que era aquilo.
A mamãe olhava a lista, balançava a cabeça e lamentava: Não vai dar meu filho… Bem, disso eu já sabia. Mais uma vez eu não ia conseguir realizar o sonho, meu e da minha família. Isso deixava-nos muito triste.
Porém, eu estava intrigado com o tal do objeto desconhecido da lista. Os outros, embora não fossem de uso regular por mim e por quase todos daquele lugar onde eu morava, eu até conhecia de vista ou ouvi dizer: mas “fronha?”, o que era aquilo?
Esperei chegar a Groaíras e, no Cantodoamistempo e, nada de aparecer alguém para esclarecer a minha dúvida. O que é fronha? Fui a casa do meu amigo João.
– João, você sabe o que é fronha?
Eu, como um dos melhores alunos do Colégio, eu era orgulhoso e não queria que soubessem da minha ignorância em relação à minha dúvida. Por isso não podia ficar perguntando a qualquer um. Muito menos às professoras. Tinha de descobrir e aprender sozinho ou questionando meus pais ou meu amigo João.
– Fronha?
Indagou.
– Sei lá o que é isso!
– Pois é, rapaz, na relação do Seminário eles pedem duas fronhas, e eu não sei o que é isso. Eu disse isso passando para ele o papel.
– Tem nada não, “Domingo”, vamos a Groaíras, dar uma olhada no dicionário do Colégio?
A nossa saudosa Escola Paroquial Pio XII, possuía em sua modesta biblioteca, o único dicionário da cidade.
Rumamos para a cidade, morávamos há poucos quilômetros. Já na Escola fomos informados que o Diretor, Padre Cleano, havia levado o dicionário para casa, precisava pesquisar umas palavras.
– Sem problema, vamos à casa do padre?
– Vamos.
Respondi.
Chegando lá e, com todo o cuidado, pois o padre era muito rigoroso e não gostava de ser incomodado. Tínhamos de ter a devida cautela para não chegar à sua casa nos seus horários de refeição, descanso, oração ou leitura. Sobrava pouco tempo para conseguirmos falar com ele ou com alguém de sua casa. Tomamos coragem e batemos palmas. Demorou um pouco, batemos de novo. Demorou mais um pouquinho aí apareceu uma senhora que nós conhecíamos muito, era uma professora, nossa e que era também, irmã do padre, uma pessoa muito boa que sempre tinha atenção com a gente.
– Pois não? O que vocês querem?
– É que nós queríamos dar uma olhada no dicionário e, ele não está no Colégio, disseram que o Padre trouxe para casa. E, nós necessitamos muito saber o que significa uma palavra que não estamos entendendo.
– O Cleano está viajando e o dicionário está no quarto dele e eu não posso mexer lá.
– Tá bom! Então, depois a gente volta.
E, já íamos saindo quando ela, ao que parece se compadeceu da gente e, curiosa, perguntou:
– Qual é a palavra que vocês não sabem?
Falamos quase em uníssono:
– Fronha, professora, fronha!
– Fronha? Vocês não sabem o que é uma fronha?
– Não, professora, sabemos não.
– Esperem aí.
E entrou na casa. Em pouco tempo, estava de volta com um pano bordado com as iniciais R.C.M. as iniciais do nome do nosso Mestre, adornadas com ramalhetes de flores.
– Fronha é isso aqui.
Disse ela, nos mostrando aquele pano em forma de saco e bordado.
– Mas é um saco bordado?
– Não, isto não é um saco, respondeu ela, isto aqui é uma fronha e serve para colocar o travesseiro dentro.
Danou-se! E, nós dois, mais uma vez, quase em uníssono:
– Travesseiro?!
– E o que é um travesseiro?!