Histórias da minha avó: o lobisomem da Vila de Santo Antônio das Almas de Itabaiana

Carlos Braz, 28 de Junho, 2020 - Atualizado em 28 de Dezembro, 2020


HISTÓRIAS DA MINHA AVÓ: O LOBISOMEM DE SANTO ANTONIO DAS ALMAS DE ITABAIANA.

Por Carlos Braz 

Construída com contribuição igualitária do português do índio e do negro africano, a cultura brasileira é composta por um mosaico que surpreende pela pluralidade de suas manifestações repletas de múltiplos personagens, que acomodados no imaginário popular alimentam crendices difundidas geração a geração pela oralidade ou através da literatura popular, cordéis, prosa, versos, romances e mídia eletrônica.

Muitas dessas lendas têm origem antropológica, alicerçadas em tradições religiosas. Derivam das fraquezas humanas, da eterna luta entre o bem e o mal, representados pelos fenômenos naturais, os anjos da guarda,   os santos católicos e suas orações, os orixás das religiões afrodescendentes, os caboclos e protetores da natureza da etnia indígena.

O relato que farei adiante faz parte de um conjunto denominado histórias da minha avó.que aborda o universo afrodescendente e seus costumes, a simbiose destes com práticas indígenas e europeias, e a diáspora que espalhou pelo novo mundo milhares de escravizados. 

Minha avó se chamava Rachel e veio ao mundo dia 24 de junho em ano não sabido, em uma senzala na Vila de Santo Antônio das Almas de Itabaiana. Lembrava que nascera liberta, beneficiada pela Lei do Ventre Livre, e viveu ao lado sua mãe cativa, deixando-a só após a sua morte, quando então arranjou casamento com um negro alforriado e mudou-se para Aracaju.

Na capital da província foi morar em uma casa de taipa nas cercanias do morro do Bonfim, região frequentada pelos desabonados relegados ao limbo social, trabalhando de sol a sol para sobreviverem. Ela vendendo cocada, aguardente, lavando e passando roupa na vizinhança. Ele, carregando sacos de açúcar e outras mercadorias no porto ali próximo, em uma rotina insalubre que comprometeu sua saúde e o levou à morte, deixando-a com um filho para criar. Tempos depois perdeu a visão trabalhando na torragem de café. Todos os dias eu levava uma marmita com seu almoço e jantar, aproveitando-me para ficar longe das vistas do meu pai, solto na rua com outros molecotes da minha idade. Vó Rachel faleceu aos 98 anos de idade, em uma casinha na atual Rua Simão Dias, totalmente lúcida.

Algumas vezes eu lá dormia, e quando isso acontecia sentávamos, eu no batente da soleira e ela em um banco de madeira ao lado da porta. Então contava-me estórias do tempo da escravidão, dos castigos, das fugas, das práticas de resistência e do cotidiano de trabalho e sofrimento. Como tinha dotes culinários desde cedo, labutava na casa grande, fato que contribuiu para que não passasse pelo tormento dos suplícios do trabalho na roça.

Tinha uma memória poderosa para alguém da sua idade; lembrava de nomes e acontecimentos sem muita dificuldade. Entre tantos relatos que ouvi em silencio, um que me marcou tão profundamente que o lembro com detalhes até os dias de hoje. Estávamos na semana santa e a estória escolhida foi a de uma entidade fantasmagórica que assombrava as noites frias das veredas do interior brasileiro: o lobisomem.

Com a voz serena e firme disse que era um homem que foi castigado por Deus por ter cometido os piores pecados que podiam existir, sendo condenado a virar um bicho de encantamento, meio homem, meio lobo, em noites de lua cheia, no tempo da quaresma. Corria pelos becos e campos à procura de vítimas, e tinha preferência por crianças recém-nascidas. Se alimentava de sangue, e os dentes pontiagudos penetravam até os ossos daqueles que atacava. Tinha a inhaca de bicho do mato, um par de chifres na testa e olhos que cospiam fogo.

Quando homem, se tornava uma pessoa comum, sem qualquer vestígio do seu lado sobrenatural, e, desse modo, ninguém podia afirmar quem era a besta fera que assustava aquela região. Suspeitavam de muitos; barbudos, fedorentos, eremitas que viviam afastados do convívio social ou qualquer um que não se enquadrasse no padrões definidos pela igreja.

O mistério sobre o bicho medonho perdurou por séculos, e muitos que se aventuraram a capturá-lo, sumiram sem deixar rastros ou enlouqueceram, surtando em noites de lua cheia e sendo alvo de gozação e escárnio.  Mas, enfim, o ser que personificava o mal sobre a terra teve sua identidade descoberta por uma pessoa que ninguém jamais poderia imaginar ser capaz de tal proeza: minha avó.

Contou ela que sua viagem de Santo Antônio das Almas até Aracaju, foi feita em um carro de bois, o que obrigava os viajantes a fazerem várias paradas para descansar o corpo, comer ou comprar provisões nas vendinhas existentes pelo caminho. Em uma delas, Antônio, esse era o nome do meu avô, desceu para providenciar água e demorou-se mais que o suficiente. Impaciente, ela foi à vendinha em busca do companheiro, avistando-o no balcão a prosar com o vendeiro, o qual não conhecia.

Quando levantou a vista, seus olhos se cruzaram com os dela e foi como se uma corrente de energia invadisse o ambiente. Enxergou naquele momento o lobisomem em toda sua horripilante figura. Um calafrio repentino, alternou-se com rajadas de calor atravessando seu corpo, impossibilitando-a de falar ou fazer qualquer movimento. A fera maldita deu um salto e veio em sua direção, olhos alumiando, garras em riste para aniquilá-la com uma só patada. Um cheiro de enxofre entrava pelas suas narinas e sentiu as pernas dobrarem, a visão escureceu e caiu desfalecida.

O movimento do carro de bois e o mugir dos animais fez com que tentasse abrir os olhos sem conseguir. A luminosidade do sol de verão lhe pareceu um halo de luz celestial. Aos poucos moveu as mãos sentindo seu próprio corpo e ouviu vozes que devia ser dos seus ancestrais que aguardavam sua chegada. Tentou falar, mas nenhum som saiu da sua garganta. Fechou os olhos e perdeu a noção do tempo.

Quando finalmente conseguiu abri-los, estava em um lugar desconhecido. Aos poucos as imagens foram se firmando e os sentidos sendo ativados. Ao seu lado Antônio aguardou sua recuperação. Contou-lhe que já haviam chegado a seu destino, e que já tinha erguido o barraco que lhes serviria de lar, enquanto ela dormira por dois dias seguidos.

Questionada sobre o que ocorrera, nada falou. Fez-se de muda optando pelo silêncio e reflexão. Precisava medir bem as palavras que seriam ditas. Se dissesse que viu o lobisomem, certamente seria vista como louca. Temia também ser perseguida pela besta fera, que precisava manter seu segredo. E assim permaneceu por mais um dia.

Com sua recuperação e a rotina dos dias, o assunto foi evitado em prol do sossego familiar. O segredo permaneceu até aquele distante dia em que me foi revelado, alegando que estava próxima da morte e nada tinha a temer. Não dormi naquela noite, e a lâmpada do quarto permaneceu acesa até o amanhecer.

Hoje, as mães e avós não contam mais histórias para seus filhos e netos. A modernidade virtual descartou os personagens folclóricos das estórias de antigamente.  Sacis- pêreres, caiporas , maçons , mulas sem cabeça e tantos outros entes mitológicos desapareceram por completo da imaginação popular dos grandes centros urbanos. Contudo, sobrevivem ainda nos grotões e veredas distantes desse enorme país, nas matas, nos sertões e nas comunidades mais afastadas.

 

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