EM ALGUM LUGAR DO PASSADO: LEMBRANÇAS DA MULAMBADA.

Carlos Braz, 18 de Abril, 2022

 

 

EM ALGUM LUGAR DO PASSADO: LEMBRANÇAS DA MULAMBADA 

Por Carlos Braz 

 A sabedoria popular afirma que recordar é viver, premissa vista como verdadeira desde tempos imemoriais. Assim sendo, com o passar dos anos e a velhice se aproximando a galope, são inevitáveis os momentos de reflexão e reminiscências, durante os quais abrimos os escaninhos da memória a procura de momentos felizes, de nomes e situações que nos marcaram, das escolhas que fizemos e suas consequências. E assim, fazemos uma viagem ao passado pelo túnel do tempo.

Lembro-me como hoje do Beco do Alecrim, uma viela sem saída, mais conhecida como Mulambada, uma referencia pejorativa às pessoas que ali moravam em casas sem pintura e números nas portas, um canto esquecido pelo poder público ante o crescimento urbano emergente da Aracaju de outrora. 

Por ali eu passava todos os dias a caminho da escola seguindo fielmente as instruções os meus pais: não pare em lugar nenhum nem converse com desconhecidos.

Mas a curiosidade natural da adolescência era mais forte e aos poucos fui observando com atenção as pessoas que ali moravam, todas miseráveis, abandonados pela falta de sorte ou pela vontade de Deus. Eram todos negros ou pardos e sobreviviam de biscates. Encaravam qualquer serviço pesado e insalubre, desde limpeza de fossas até recolhimento de entulhos dos terrenos baldios existentes na região.

Saiam cedo de seus casebres em busca do pão de cada de dia, em passos apressados e corpos curvados, como se carregassem nos ombros todos os pecados do mundo, olhos pregados ao chão, evitando o repúdio dos passantes, já que eram alvos da desconfiança e preconceito, mesmo sem estarem envolvidos em arruaças e bebedeiras.

Viviam quietos, resignados com a sina que o destino lhes reservara.

Ao fundo da viela, abrigado em um sobrado em ruínas e atulhado de lixo, vivia o personagem mais marcante daquele pedaço de chão, um mendigo conhecido como Daniel, que ali surgira vindo não se sabe de onde. Não trabalhava como os outros, sobrevivendo da caridade dos mais espirituosos. Com a roupa em trapos e um mau cheiro que se sentia a distancia e passava os dias removendo os lixeiros da cidade em busca de livros e revistas.

Ao por do sol, podia ser visto em sua tapera, à luz de um fogo de lenha, a ler os exemplares que coletara em sua enigmática caminhada diária.

Algumas lendas urbanas foram construídas a seu respeito. Diziam que não era louco e escolheu aquela vida após desilusões acadêmicas, ou que seu infortúnio tinha como origem uma desilusão amorosa. O pobre homem desapareceu de repente, não sendo mais visto em nenhum lugar da cidade ou nos municípios vizinhos, o que alimentou ainda mais o imaginário popular a respeito da sua pessoa.

O tempo passou e hoje moro em um apartamento no mesmo bairro, de onde posso ver a mulambada, agora batizada de Alameda Alecrim, que ganhou novos contornos com a demolição dos casebres, substituídos por um pequeno e aprazível centro comercial, com bares, sorveterias, uma casa lotérica, e outros estabelecimentos, entre eles uma livraria bem movimentada, que serve um delicioso café, e permite aos seus frequentadores compartilharem livros incentivando a leitura não virtual. Sempre que quero distancia da televisão e do celular apareço por lá.                                   

Vez em quando surge na entrada da alameda um homem vestido em um terno amarrotado, que recita aos berros trechos do Evangelho, avisando que foi escolhido por Deus para avisar que Jesus está voltando.

 

 

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