Projeto Rondon (III)

Sergipe na Operação XVI – Miranda (Mato Grosso do Sul)

Marcio Monteiro, 20 de Abril, 2021 - Atualizado em 21 de Abril, 2021

 

 

Em 1976, a Coordenação Regional do Projeto Rondon em Sergipe encontrava-se sob a direção do médico cardiologista Antero Pales Carozo, e supervisão operacional de Rosa Costa Pinto (primogênita do urologista e ex-vereador aracajuano Lucilo da Costa Pinto), dois dedicados e admiráveis profissionais. Foram anos de árduo trabalho, muitas responsabilidades e verba curta. A Coordenação funcionava precariamente em um antigo casarão localizado na esquina das ruas Propriá com Siriri, no Centro de Aracaju, contava com uma estrutura de pessoal constituída por estagiários remunerados através de bolsa pelo Ministério do Interior, e dentre os quais eu me incluía, na época cursando administração na Universidade Federal de Sergipe e respondendo pelas finanças e patrimônio da Coordenação em Sergipe.

No primeiro ano de estágio (1975) viajei com a coordenadora Rosa para as cidades pantaneiras de Miranda e Porto Murtinho, ambas localizadas no então estado do Mato Grosso para estabelecer contatos locais e realizar o trabalho de preparação da logística visando o transporte, alimentação e hospedagem dos técnicos e universitários de Sergipe, que iriam atuar nesses dois municípios no ano seguinte, na Operação Nacional XVI, do Projeto Rondon. Retornamos a Aracaju com muitas informações e alguns vídeos curtos, filmados uma Super 8 cedida pelo colega de coordenação e estudante de medicina, Lúcio Prado Dias.

Logo, iniciamos a programação de reuniões de sensibilização para os estudantes que iriam participar da Operação XVI, bem como ultimar providências como: imunização contra a febre amarela; entrega de material e camisetas do Projeto; envio antecipado dos medicamentos da Central de Medicamentos (CEME) para serem utilizados no tratamento e distribuição aos pacientes atendidos pelos universitários da área de saúde; entre outras iniciativas, e na expectativa de que ali estaria encerrada a minha participação naquela Operação. Entretanto, dias antes da viagem, fui convocado pela coordenadora Rosa para atuar como monitor do grupo de estudantes que iriam atuar no município de Miranda, devido a imprevisto que impedia o estagiário que estava previamente de viajar na data prevista. Mesmo sendo um calouro do curso de administração da UFS, resolvi encarar o desafio.

Acredito que a minha indicação pela coordenadora Rosa Costa Pinto, deveu-se ao fato de tê-la acompanhado na fase de preparação logística nos municípios de Porto Murtinho e Miranda, no Mato Grosso do Sul, e estabelecido contatos e parcerias com autoridades civis e comandantes militares dessas localidades, essenciais naquele tempo (Início dos anos 70) em que o acesso aos meios de comunicação eram difíceis, ineficientes e por vezes limitados ao uso de aparelhos de rádio amador. Contaram também os conhecimentos que acumulei durante os quase dois anos de estágio prestados na Coordenação Estadual, cuidando dos recursos materiais e financeiros.

A turma que ficou sob a minha responsabilidade de 04 de janeiro a 10 de fevereiro de 1976, em Miranda, além da sede, foram distribuídas em equipes que atuaram no distrito de Campão; nos povoados de Morraria, Poeira e Brejão; e, na Reserva Indígena de Cachoeirinha. Participaram da Operação Nacional XVI, em Miranda, um total de 25 estudantes que cursavam a Universidade Federal de Sergipe; Escola Técnica Federal de Sergipe; Faculdade Tiradentes; e, Escola Agrícola Benjamin Constant, abrangendo as áreas de educação (5), odontologia (2), medicina (4), administração (3), economia (2), agropecuária (2), edificações (3), e serviço social (4).

E lá fomos nós para o Pantanal, cheios de expectativas positivas, e para mim em particular, a com a grande responsabilidade de levar no bolso um cheque nominal com o valor correspondente à previsão de gastos da Operação, controlar despesas e prestar contas, além de responder por uma turma de estudantes constituída basicamente por adolescentes, mas com alguns veteranos já trabalhavam em empresas de Sergipe e com idade para serem meus pais.

Decolamos de Aracaju em voo charter da Vasp, dividindo espaço com estudantes de Alagoas que também iriam atuar no Pantanal. Descemos em Campo Grande e seguimos de ônibus para o município de Miranda. Chegamos sob sol forte e sentindo falta daquela brisa gostosa à qual estávamos acostumados em Aracaju. A sensação de ar abafado produzido pela combinação de calor e umidade, logo nos habituou à constante hidratação e a carregar garrafas com água mineral ou água da chuva (costume local) para enfrentar a transpiração e amenizar o mormaço.

Os homens foram acomodados em um único dormitório amplo, anexo à quadra de esportes da cidade. A primeira noite foi infernal, atacados que fomos impiedosamente por pernilongos e insetos gigantes não identificados, pois não havia mosquiteiro nas camas ou tela nas janelas do dormitório improvisado, e a única proteção disponível eram os próprios lençóis. Foi uma verdadeira benção ver surgir nas manhãs os primeiros raios de sol após as primeiras aterrorizantes noites proporcionadas pelos intrusos voadores que nos castigavam impiedosamente nas madrugadas. As estudantes, por sua vez, foram poupadas da sanha dos insetos voadores pelo fato de terem ficado hospedadas no hotel da cidade, local onde todos nos passaríamos a fazer todas as refeições durante o período de duração da Operação Nacional XVI.

Uma das recomendações feitas por moradores aos estudantes foi de que transitassem pelas calçadas com as pernas afastadas do meio fio. O motivo alegado era de que havia risco maior de levar uma picada de cobra distraída, pois segundo os locais era comum encontrar esses répteis à noite nesses locais à procura de roedores. De início achamos que havia um pouco de exagero e folclore na recomendação, até que em um final de tarde, durante o horário de jantar no hotel, vimos um peão entrar no restaurante cambaleando e vindo em nossa direção ladeado por alguns hóspedes. O homem acabara de ser picado na rua por uma cobra que transpassou com os dentes o couro de sua bota, deixando duas marcas no seu pé. Rapidamente juntamos algumas mesas para acomodá-lo e logo entraram em ação os estudantes de medicina, que prontamente fizeram a assepsia do local da picada e prepararam o cidadão para ser encaminhado para o hospital da cidade.

Coube-me a missão de tentar conseguir o soro antiofídico na única farmácia que poderia dispor da medicação na cidade. Embora o estabelecimento ficasse próximo ao hotel, o farmacêutico demorou a localizar a única caixa disponível nas imensas prateleiras envidraçadas de sua “botica”, muito assemelhadas às que existiam nas primeiras décadas do século XX. Após alguns minutos de busca nas prateleiras mais altas, o farmacêutico localizou a única caixa com soro disponível no estoque. Retornei ao hotel com as ampolas do soro antiofídico, entregando-as aos acadêmicos de medicina que haviam realizado os primeiros socorros e iriam acompanhar o cidadão até o hospital local para ministrarem a medicação.

A essa altura da Operação, já havíamos conseguido finalmente com a Prefeitura ventiladores do tipo jumbo, bem barulhentos, mas que se mostraram muito eficientes contra os mosquitos gigantes que nos atacavam à noite. A partir de então, passamos a dormir como uma pedra e acordar com mais disposição, cada qual com sua agenda de trabalho pronta para retomada dos trabalhos após o café da manhã no hotel. Lembrei-me então de visitar o peão que foi picado pela cobra para conferir se ele estava se bem e se recuperando. Lá chegando, qual foi a minha surpresa e uma ponta de decepção ao saber que o haviam liberado para que pudesse tratar-se em casa. E nem mesmo um recado de agradecimento foi deixado para ser transmitido ao pessoal do Projeto que lhe prestou socorro! Enfim, o importante é que fizemos a nossa parte, incondicionalmente e sem esperar por qualquer tipo de retribuição.

Analisando depois e com mais serenidade o contexto, cheguei à conclusão de que esse acontecimento fortuito serviu como uma espécie de start para a atuação dos estudantes em Miranda, pois estávamos lá para servir e sermos colocados à prova, enfrentando situações reais, buscando colocar em pratica os ensinamentos da academia, e ao mesmo tempo, retribuindo com atenção e prestação de serviço pessoas desassistidas e praticamente abandonadas à própria sorte. O Projeto Rondon foi sem dúvida uma grande experiência de vida para os estudantes sergipanos que puderam ver de perto as dificuldades enfrentadas por irmãos brasileiros que vivem uma realidade de privações no seu dia a dia, e ao mesmo tempo realizar ações que beneficiaram toda a população do município de Miranda.

Enfrentamos também situações envolvendo participantes da Operação, que muito se assemelham aos problemas que estamos acostumamos a assistir nos chamados realities da TV: ruídos de comunicação, intrigas, situações de stress, atitudes impulsivas, excessos, entre outras questões de relacionamento que nos remetem a esse tipo de programa. Nada porém que nos surpreendesse, considerando o natural desgaste provocado pela convivência diária entre adolescentes que mal se conheciam, sujeitos a dividirem espaço e compartilhar tarefas. Embora estivéssemos no governo do presidente Ernesto Geisel, vivendo o auge da Ditadura, o relacionamento dos coordenadores do Projeto Rondon com os militares e autoridades locais foi sempre amistoso e colaborativo. Portanto, os estudantes não estavam submetidos ao qualquer tipo de regra disciplinar que pudesse condicionar ou tolher a sua forma de atuação.

O fato de Miranda estar localizada dentro do Pantanal, próximo a fronteiras internacionais com grande trânsito de drogas oriundas do Paraguai e da Bolívia, exigia de todos um certo grau de prudência. Mesmo assim, embora excessos tenham sido cometidos por alguns, nada teve relevância suficiente que pudesse comprometer o trabalho desenvolvido ou qualidade dos serviços prestados pelos estudantes sergipanos naquele município. Na verdade, a Operação realizada em Miranda serviu como uma oportunidade de crescimento pessoal e de aprendizado para a vida dos participantes.

A integração entre os estudantes e os moradores da região foi acontecendo naturalmente à medida que o trabalho avançava no município, assim como aumentavam os convites para participação em festas e nos bailes dominicais onde até aprendemos a apreciar e a dançar a polca paraguaia. Os participantes, que em sua maioria sequer havia realizado uma viagem aérea, puderam vivenciar e receber muita informação no curto espaço de cinco semanas, pondo em prática os conhecimentos adquiridos na academia em troca da experiência proporcionada pela convivência diária com aquela gente adaptada a uma realidade de carências e desassistida pelo Estado.

Os estudantes sergipanos que participaram da Operação Nacional XVI deram a sua contribuição ao processo de integração nacional, assim como tiveram a oportunidade de pôr em prática habilidades e conhecimentos adquiridos em sala de aula, experimentando uma verdadeira lição de vida e de cidadania, que certamente serviu para o crescimento pessoal e para a formação de grandes profissionais, alguns dos quais permanecem atuando em suas especialidades e prestando relevantes serviços à sociedade sergipana.

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