Os mansos possuirão a terra? (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 25 de Julho, 2020

O tempo que voava, parou. O confinamento impôs o tempo dos prisioneiros: uma sequência indistinguível, sem rumo, sem ordem, sem futuro, um tempo que não dura, onde qualquer instante parece igual ao outro. Um tempo sem ritmo que confira significado as nossas vidas.

A Peste atomizou o tempo. Precisamos recriar uma convivência atemporal, uma nova epifania.

Os espaços de interação social se tornaram virtuais, on-line, mediados por tecnologias. Deixaram de ser presenciais: as aulas, as missas (até as de sétimo dia), os velórios, as consultas médicas, os shows, o teatro, as audiências, o jogo de futebol e até o carnaval.

A vida está sendo remarcada para o pós Pandemia. O sonho é que virá uma vacina salvadora.

A vacina nos salvará de que? O dilema da humanidade não são os vírus, eles são apenas mensagens, alertas, de que o nosso relacionamento com a natureza extrapolou os limites.

Na cosmogonia judaico cristã, Deus criou a terra, o homem e fez um testamento: “Sedes fecundos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Entregou tudo ao homem! Deus não imaginou do que o “sapiens” seria capaz.

Deus logo percebeu que a maldade do homem era grande sobre a terra e tentou consertar, mandou o dilúvio. Fez uma limpeza temporária, mas em pouco tempo tudo voltou ao normal.

Quando vejo aquelas enchentes, cada vez mais frequentes e intensas, sempre penso que um novo dilúvio pode estar sendo preparado.

E disse Iahweh: “farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei – e com os homens, os animais, os repteis e as aves do céu -. Porque me arrependo de os ter feito”. Claro, Deus vem adiando a execução da sentença. Sempre cabe recursos.

Deus depois mudou os termos do testamento: “os mansos possuirão a terra”, pensou que assim, em mãos dos mansos, teríamos justiça.

Onde estão os mansos? Distraídos, vivendo os seus desassossegos! Qual era a normalidade que a Peste nos subtraiu? O que os mansos, herdeiros da terra, pensam sobre isso?

A nova epifania precisa aprofundar a contemplação sobre o fim das grandes narrativas, o fim da Era épica e o fim da modernidade. Vamos recriar uma vida sem pressa, mais reflexiva. “Enquanto o tempo acelera e pede pressa/ Eu me recuso faço hora vou na valsa/ A vida é tão rara” – Lenine

“Não se trata de chorar a perda da época da narrativa. Não há razão para que o fim da narrativa, o fim da história, traga consigo um vazio temporal. Ao invés, abrirá a possibilidade de uma vida que não tenha necessidade da teologia nem da teleologia, e que, apesar disso, tenha o seu próprio aroma, mas requer uma revitalização da vida contemplativa”.

“A hipercinesia quotidiana despoja a vida humana de qualquer elemento contemplativo, qualquer capacidade de demora. Pressupõe a perda do mundo e do tempo”. - Byung-Chul Han

“O corpo pede um pouco mais de alma.” Os mansos precisam pôr fim ao “non-stop” do capitalismo do século XXI. Os mansos precisam retomar a Ira de Aquiles, para criarem outra odisseia.

Espero sair do grande confinamento para um grande sossego. Precisamos respirar! (I can't breathe). Foi exatamente o fôlego que a Peste atacou. Respiradores artificiais não resolvem.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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