Os Nativos Digitais Ocuparão a Terra. (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 13 de Setembro, 2020


Sou da geração de 1954, nascemos em outro mundo. Cruzamos a segunda metade do Século XX, sob ventos e tempestades. Tudo o que era sólido se desmanchou no ar. O Vaticano II repaginou a igreja, a queda do muro acabou o comunismo soviético, mapeamos o genoma, a imagem virou digital, tudo virou mercadoria.

A modernidade não cumpriu o prometido. A explosão tecnológica não trouxe nem felicidade, nem bem estar. O comunismo deu certo na China e a social-democracia nos países nórdicos.

Somos da geração analógica, que entende o mundo por aproximações comparativas, por analogias. Acreditamos na intuição, no sexto sentido. A analogia é uma forma poética de conhecer as coisas, pois permite as subjetividades, os sonhos e os devaneios.

O mundo digital é pão/pão, queijo/queijo. Tudo cartesiano. Não precisam dos sentidos. Por enquanto, bastam a visão e audição, sobretudo a visão. A realidade virou uma superposição de imagens.

A inteligência artificial não precisa do tato, do paladar e do olfato. São sentidos que entraram em desuso.

A lógica matemática prescinde dos cheiros.

Os sentidos serão substituídos por chips interativos. O pensamento humano será direcionado para a dualidade produção/consumo. O resto é delírio.

Essas alucinações quarentenárias foram despertadas pelo cheiro do cuscuz de milho ralado, que invadiu a minha viagem matinal pela Internet.

Isso mesmo. Amanheceu chovendo e com uma graviana assoprando nos coqueiros.

Um cheiro do cuscuz de milho ralado invadiu o meu escritório. O som do coco ralando, para se extrair o leite, deliciou os meus ouvidos. A cozinha está em festa. Comecei a viajar pela infância. Meu pai ralava o milho e o coco de madrugada.

O velho cuscuzeiro de barro, borda alta e fundo mais estreito que a boca, a massa do cuscuz envolvida com um pano de algodãozinho, para facilitar a passagem do vapor.

O cuscuzeiro se portava imponente nas trempes do fogão a lenha.

A preparação era cuidadosa, lenta, com água e sal, meu pai ia machucando a massa até ficar com a pegajosidade necessária, nem solta, nem grudando nos dedos. A massa depois ficava descansando por um tempo certo.

Vocês já encontram um cabelo da boneca do milho no cuscuz?

Comecei a fazer analogias. O kuz-kuz é uma herança dos Mouros. Já era prato popular em Portugal, quando o Brasil apareceu no caminho das Índias. Dom Sebastião mandou servir cuscuz as tropas, na batalha de Alcácer-Quibir. O Brasil acrescentou o milho e o leite de coco.

Gente, a geração analógica encontra poesia até no teimoso.

Quando elogiávamos o cuscuz de papai, ele repetia cheio de humildade e sabedoria: “com leite de coco, se come até areia.”

Como estudante universitário, morando na República Cebolinha, comi muito cuscuz, muito aqui é muito mesmo, pela manhã e pela noite, feitos por Dona Zefinha, uma eximia cozinheira. Mas nada como os cuscuzes de Seu Elpídio, em minha infância.

Acho que não tenho mais tempo para mudar, continuarei com o velho pensamento analógico.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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