Os Loucos da Minha Rua. (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 21 de Março, 2022 - Atualizado em 21 de Março, 2022


 

Na Vila de Santo e Almas não existiam alienistas. Os alienados mansos viviam em liberdade, sem o controle da medicina. Eram doidos de estimação. O juízo perfeito era coisa rara e não deixava de ser uma forma de anormalidade.

A loucura era atribuída as dificuldades da vida e ninguém estava livre. “Juízo de gente não é nada”, se dizia à boca miúda. Existia a loucura familiar, herdada.

Entre a razão e o delírio encontrava-se uma multidão de neuróticos.

No Beco do Ouvidor, num pequeno trecho onde eu morava, existiam três doidos varridos. O filho do eletricista e dois filhos do marceneiro João Mena: André e Teodora.

João Mena era especialista em moveis rústicos, sobretudo em tamboretes de três pés. Em qualquer boteco do agreste o “design” dos tamboretes de João Mena era reconhecido. Resistentes e confortáveis, o preferido pelos pinguços.

João Mena tratava os filhos com espancamentos e castigos. Era a sua forma de educar. As surras em André, com fio desencapado, eram frequentes.

Fui colega de André, na escola de Maria de Branquinha. Um menino calado, normalmente esquisito e inteligente. André lia muito, curioso. Lia para esquecer a violência do pai. Eu sou testemunha, André sempre foi “são psíquico”, como se dizia.

Nos critérios daquela época, doido era os que deliravam, a incoerência verbal, ou os que se calavam, o mutismo absoluto. André incorporou o mutismo, reagiu as hostilidades do mundo com o silêncio.

André surtou e saiu de casa. Virou um andarilho. Vagava pelas ruas e becos, sem mexer com ninguém. Quando tinha fome, batia na porta de Dona Maria, esposa de Durval do Açúcar. Lá todos comiam.

Havia a crença que estudar muito poderia enfraquecer o juízo, principalmente entre os pobres, sem condições de vida adequadas para os estudos. Mamãe me alertava: cuidado com essas leituras, lembre-se o que aconteceu com André.

“Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. – Machado de Assis.

Outros acreditavam que André herdou a loucura do pai. As taras ancestrais. A teoria da degenerescência, de Morel, era bem aceita em Itabaiana.

André nunca se reconheceu louco. O carimbo foi botado pela sociedade. Lima Barreto costumava dizer que a loucura era um mar insondável.

Certa feita, o surto de André teve um desdobramento trágico. A polícia encarcerou André no Hospício de Aracaju. Lá, André foi submetido a sessões de eletrochoque e outros maus tratos. Foi o fim do que restava da consciência, dos sonhos e da esperança na felicidade.

No pavilhão do Hospício, nu e desprotegido, o sentimento de André foi resumido por Lima Barreto, no romance Cemitério dos Vivos:

“Pela primeira vez eu senti a desgraça do desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu pobre corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia.”

André escapou do Hospício, não sei como, e voltou a perambular pelas ruas da Aldeia. Não sei se ainda é vivo. Nosso último encontro foi no Asilo de Itabaiana. Aquele do Cruzeiro do Século, do Tabuleiro dos Caboclos. O mesmo André.

Essa desorientação das falas humanas é posterior a Torre de Babel. Entre os doidos da minha rua e os atuais padecentes de transtornos mentais, não sei onde o sofrimento humano é mais intenso.

Não creio que a medicina organicista ao transformar a loucura em doença mental tenha encontrado caminhos para aliviar o sofrimento. A saída química é a transferência do problema.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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