PRO LADO QUE A BESTA DEU

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 19 de Setembro, 2020 - Atualizado em 19 de Setembro, 2020

PRO LADO QUE A BESTA DEU

 

As expressões já antigas da gente simples do interior são meios próprios de relacionamento regional, muitas vezes, incompreensíveis aos que não se encontram no contexto. Elas são frutos das experiências vividas na cotidianidade, do colóquio íntimo de quem não sente vergonha de si mesmo, de ser quem é, sem se pautar por sentimentos esnobes. São elas as grandes responsáveis pela preservação da cultura urdida num “ethos” próprio, gerador do dinamicidade e autenticidade à existência concreta.

São prenhes de sentido, com significados altamente conhecidos por todas as gerações de uma mesma família ou das mais variadas, que se dão ao luxo de condividir o mesmo espaço. Pena é que muitas pessoas que se obrigam a deixar as pequenas povoações e se mudam para grandes centros, perdem esse jeito simples e delicado de se comunicar, por vezes, chegando mesmo a sentir vergonha de tê-lo usado. Infeliz desfaçatez, posto que negar o “ethos” de uma comunidade é negar-se a si mesmo, relegando todo o arcabouço no qual nasceu e cresceu.

Uma consequência deletéria desse modo de agir, que se nega a si mesmo, é a desconcertante experiência de importar cultura, que chega até a comunidade com ares de bem-sucedida, pronta e perfeita, porque tecnologicamente melhor, constituída de termos da moda que, paulatinamente, vão substituindo o modo local de se comunicar, de dizer e de ver as coisas. Quando se importam costumes, a consequência maior é a morte da cultura autóctone, fazendo minguar toda uma tradição rica em costumes que dão identidade e vida a quem ali vive. Se quiser matar o cidadão, ofereça-lhe como opção irremediável o uso de termos e de símbolos que lhe são alheios, apresentados como os mais eficazes e suficientes.

Pois bem! No Cajueiro, um Senhor bem-apanhado de filhos tinha o costume de se mostrar vigilante sobre sua prole, objetivando não passar por dissabores futuros, quanto aos arranjos e desarranjos familiares. “O olho do dono é quem engorda o gado”, dizia empolgado aos colegas de gole, na bodega, em dias de domingo. Palrava sobre a boa procedência de sua prole, meninas e meninos bem-criados que não dariam para coisas ruins. Entre uma talagada e outra, a expressão: “ninguém tem fio marmió do que eu, na redondeza. Meus fios é de qualidade, sem defeito”!

Após idas e vindas, numa manhã de domingo, à hora reservada para os goles, o palrador dos bons costumes familiares não apareceu. Viajou, pensaram os amigos de copo, pois nunca falha. Se tivesse na região, estaria na bodega, para morder a cana santa de cada domingo, como numa bela liturgia em que se ofertam dissabores, angústias, sofrimentos íntimos, inseguranças, tormentas recônditas das quais ninguém tomará conhecimento. É para esse fim que serve a malvada pinga. Ninguém nela mergulha, com certa recorrência, sem uma causa. Serve para espairecer, para desanuviar. Outra espécie de viagem é contar vantagens.

Entre um trago e outro, ele não economizada no Latim para se referir às filhas, com sua moral ilibada; “de lá de casa, não sai puta”! Esqueceu-se de que, enquanto seus olhos, nas manhãs dominicais, se enlevavam pela boa prosa entre amigos, e pelos bons goles, suas filhas estavam distantes, sem olhares que não fossem os da sedução, daqueles que distraem e incitam aos mais variados gestos e sentimentos. Pois bem, ninguém escapa à sorte de ser humano e de proceder como humano, ao longo da existência. Erros e acertos, seduções, fracassos e vitórias, sonhos desfeitos ou construídos, mal e bem fazem parte da história que implacavelmente incide sobre cada um, embora de modo desconcertante.

Naquele domingo, em que o defensor da pureza familiar não apareceu, correu a notícia de que, na noite anterior, uma de suas filhas, a do meio, fugiu. O autor do ato era-lhe desconhecido, dando a ideia de que, na prática, ele não vigiava sua prole. Do contrário, seria capaz de dizer quem fez o “furto” de uma de suas preciosidades... passou o dia, montado na besta, à procura da moça que fugira, iludida com um grande amor, a quem, a essa altura, já chamava de “marido”. As horas se avolumaram e o alvo não foi encontrado. Um retorno desconcertante, vergonhoso... tantas vantagens ao pé do balcão de pinga, com o orgulho de ser pai zeloso. Agora, a decepção de se sentir igual aos demais, cujos filhos e filhas estão sujeitos aos erros, às fraquezas que marcam o penar do humano existir.

Para desanuviar, resolver ir ao encontro dos amigos, já pelas cinco da tarde, mas sem titubear, com voz impostada, com tez alegre e com o senso de humor de sempre. Esqueceu-se de que, bem antes de ele chegar, a notícia do “sumiço” da filha já estava à solta pelas plagas da redondeza. Nesses lugarejos, a facilidade com que as novas circulam é impressionante. Quase me tempo real, com requintes assustadores de certos comentários e/ou acréscimos. Desmontou da besta, cumprimentou os presentes, pediu uma pinga, quando foi indagado pelo bodegueiro que, diga-se de passagem, gostava de uma infuca: - O que sucedeu que o senhor só veio para o meu estabelecimento, provar da casca de pau, só a esta hora? Algum entrevero? Ele engoliu de uma só vez, a dose que pedira, cuspiu, temperou a garganta, acendeu um pacaio, tirou duas baforadas generosas, e disse: “eu tava percurano minha fia do meio, que se alotou cum um aventureiro fi dum égua e não sei adonde se incronta”!

O bodegueiro, sempre matreiro, incitou o pobre homem a dar mais detalhes do caso, como o nome do genro, a família a que pertencia, se de posses ou se um pé rapado, ao que o pobre acabrunhado pela inquisição do bodegueiro, respondeu: “num seio de nada não, meu sinhô. Mas, na quada que eu se incrontá cum ele, meto-lhe a peixeira”! E arrematou: isso é lá vida, minha gente? Trabaiei a vida todinha, pra mode dar boa vida aos bruguelo, e oi o que eu recebi, o fugimento de uma fia, sei lá cum quem. Deus tomara que ele venha caçar conversa cum eu, que vai dá bolo”!

Então, os amigos deram continuidade à prosa. Uns o cumprimentavam demonstrando solidariedade, reconfortando-o e pedindo para aceitar o ocorrido, como sendo comum na região, quando as moças estão em idade de casamento. Afinal, quem ali já não havia feito isso, na juventude. Poucos se casaram do modo “certo”. O Bodegueiro, porém, o interrogou uma vez mais: e onde ela se encontra agora? Já inserto num profundo torpor, impelido pelo ódio e pela decepção, ele, sem pestanejar, respondeu; “sei lá da peste! Acho  que foi pro lado que a besta deu”! O silêncio imperou. Fica aqui o desafio: onde fica este lugar?

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