O OLHO D'ÁGUA PRETO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 07 de Janeiro, 2020 - Atualizado em 08 de Janeiro, 2020

O OLHO D’ÁGUA PRETO

Em quadras em que a natureza era melhor preservada, quando havia mais árvores nos pastos e, nas malhadas, menos intervenção desastrosa, a terra era mais conforme ao equilíbrio natural. Ouviam-se os pássaros gorjeando, as raposas golpeando as penosas e os saruês furando os ovos no ninho. Os sanhaços vinham religiosamente bicar os mamões, as goiabas e os cajus. As mangueiras se apinhavam de saguins, que devoravam as mangas.

Nessa época, quando em vez, umas cenas causavam admiração: uma cobra se digladiava com um teiú; ouviam-se grunhidos de cachorros que perambulavam pelas estradas, próximas às macambiras, para faturarem os preás; as garças revoavam absortas, com seus intermináveis balés aéreos, para, à tardinha, pousarem às margens de lagoas e de tanques, a fim de se abastecerem de pequenos seres vivos à beira d’água. Muitas delas de avizinhavam do Olho D’água preto.

O Povoado Pé do Veado, rico em solo arenoso, não possuía tantas lagoas perenes, que resistissem à estiagem prolongada. As fontes dos sitiantes secavam e o recurso era correr para o tanque grande, já na divisa com o Nicó, para a lavagem de roupas, ou para o rico Jacarecica, que separa o Pé do Veado da Várzea do Gama. Para beber água e mesmo para encher os potes que serviriam ao uso doméstico, era imperioso ir até o Olho D’água Preto.

O nome do pequeno mas fecundo minador deveu-se ao seu tamanho minúsculo e à cor de suas águas. Eram manchadas pelas folhas que lhe caíam ao redor, mas cristalinas e prontas ao consumo. Localiza-se já ao sul do Povoado, onde residia seu Baité, e também Zé Naveta, bem rente ao caminho que dava para a Macela, estrada velha que conduzia à zona urbana do município.

Durante o verão, todos os dias da semana, as mulheres do Pé do Veado inteiro faziam procissões intermináveis, com potes e latas a cabeça, com meninos no braço, quando não no bucho. Era o Olho D’água Preto o refrigério de muitos. Algumas pessoas ganhavam uma nica, ao levar uma carga d’água para os idosos, cujos filhos foram para longe, que não podiam se dirigir ao minador.

Bancos de madeira eram postos sobre a cabeça, junto com a trouxa de roupa, para que estas pudessem ser lavadas, a uma distância segura. Não era permitido lavar roupas dentro do Olho D’água. Quem o fizesse, poderia receber uma reprimenda do delegado dos matos, que tinha seus espiões. Era lugar onde as pessoas bebiam água fresca e pura. Não podia ser contaminado com as imundícies das roupas.

Havia também os encontros de comboieiros, que ali paravam para dar água aos animais, para encherem seus cantis e para se refrescarem com uma cuia d’água que retiravam do velho minador. A nascente era respeitosamente preservada.

Alguns rapazotes fugindo da escola, do naipe de Zeca de Zezé e Tonho de Eliziário, traziam as meninas para um refresco debaixo do mulungu que ficava ali próximo. Um velho oitizeiro dava guarida a essas aventuras de meninos que se pretendiam homens feitos.

De quando em quando, os homens se reuniam para limpar o minador, a fim de vê-lo jorrando água boa o ano inteiro, sobretudo nos verões mais quentes. O Olho D’água Preto tinha o carinho e a atenção de todos os moradores do lugar. Daí o cuidado especial a ele devotado por todos, como se fosse um ato de religião.

O Velho Agostinho e sua irmã Cecília, a velha Catequista da redondeza, todos os anos, no tempo da quaresma, faziam uma via-sacra, cujo término se dava em frente ao Olho D’água Preto. Era uma forma de conservar, na consciência daquela gente, o ingente dever de preservar a nascente que permitia vida às famílias ali residentes. Tonho Grosso, pai de Guilhermino, era um dos que acompanhavam o cortejo orante, desde a capela do Cemitério do Rumo até o minador. Uma semana antes, ele, Zezé de Vicentão, Zeinha do Inhame, Senhor de Joãozinho, Vicente de Sá Barbina, Zezé de Cândio Nunes e Tino de Nenê faziam um batalhão para limpar o caminho por onde passaria o cortejo sacro.

Os tempos dos poços artesianos chegaram e trouxeram desenvolvimento para a região. O Olho D’água caiu no esquecimento; deixou de ser visitado, nem mais lhe deram trato algum. Permaneceu à espera das lavadeiras, dos comboieiros, das vias-sacras, dos adolescentes apaixonados... ninguém lhe veio ao encontro. Ao invés de chorar de solidão, o minador deu o troco: reteve, no mais recôndito de sua alma, a água que graciosamente exibia ao Povo do Pé do Veado. Suas árvores caíram e o descaso lhe perdurou. O Olho D’água Preto é mais uma joia do passado.

 

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