É PECADO MATAR GENTE NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 24 de Agosto, 2020 - Atualizado em 24 de Agosto, 2020

É PECADO MATAR GENTE NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO

Contava apenas quatro ou cinco anos, quando, do telheiro de casa, avistava na cancela da estrada, um vulto de uma senhora idosa, toda vestida com uma roupa esquisita, da cabeça aos pés. Ostentava uma espécie de turbante carcomido pela pobreza que amargava, uma saia enorme, sempre na cor preta já desbotada, uma blusa com botões cobertos, igualmente na cor preta, com mangas longas, além de um pano que lhe cobria toda a face, deixando de fora tão somente os olhos enormes, esbranquiçados, como se estivessem sempre assustados. Trazia, por sobre o ombro esquerdo, uma manta que caía para a frente e para trás, dando o tom de quase um espantalho de roça de milho.

Aos poucos, com a dificuldade de locomoção, já amparada por uma bengala rústica, feita de uma espécie de cipó forte, com um nó na extremidade superior, que lhe servia de apoio, ela se aproximava. A distância é de aproximadamente cem metros, o que ela perfazia em cerca de quinze a vinte minutos. Era por volta das oito da manhã. Vinha com a certeza de que teria o bocado certo, naquele dia. Do Cajueiro, para a sua casa, a distância no mínimo de quatro quilômetros, o que ela deveria levar umas três horas para percorrer.

A minha mãe, sempre generosa para com os pobres, a acolhia divinamente bem. Morria de compaixão da pobre senhora, idosa, desamparada por todos. Não sei ao certo se fora casada algum dia, mas era mãe de alguns filhos, dentre os quais, dois eram fortemente adoentados. Certa feita, minha mãe me confidenciou que a doença poderia ter como causa a falta de comida. Eram mais do que pobres, paupérrimos, mãe e filhos.

A voz dela era semelhante a trovoada das brabas. Quando dava uma risada – e ainda encontrava forças ou razões para isso – parecia que a chuva estava por vir, como nos dias de verão acontece. Eu me pelava de medo. Corria para atrás da porta e ficava pedindo a Deus que ela fosse logo embora. Qual nada! Menino não sabe pedir direito. A pobre senhora conversava com minha mãe, com meu pai, com os meus irmãos maiores, e chamava a todos de “esse seu menino, num tá vendo”? A exceção era reservada a minha mãe, sempre chamada pelo nome. Os demais interlocutores eram assim chamados, independentemente de serem homem ou mulher. E passava o dia todo, retornando para casa, apenas com o sol frio, pelas quatro da tarde.

Embora tragada pelo peso dos anos e pela voracidade da fome que tivera por companheira, desde o ventre materno, ela ajudava a debulhar feijão, milho, descascar coco, e até rapar mandioca. Meu pai não gostava quando ela se dispunha aos afazeres, pois, pela vagarosidade com que executava as tarefas, atrapalhava mais do que pudesse ajudar. Entretanto, sabia que aquilo era uma demonstração de que possuía dignidade e não vinha apenas pedir e explorar. Desejava ajudar, para justificar o bocado que levava para sua longínqua residência no Pov. Tijolo. O problema é que, quando passava um bom tempo sentada em troncos de mulungu, para raspar mandioca, ou “despenicar” (despencar) amendoim, as pernas da pobre senhora travavam e, para se levantar, somente com a ajuda de duas ou três pessoas. Eram gritos de todo o tamanho... eu corria e me escondia. A pobre era entrevada de dores por todo o dorso, pernas braços e cabeça, mas tinha de cumprir o dever de sair à procura de quem lhe desse sustento. Não havia assistência social, nem aposentadoria, nem vizinhos que lhe socorressem.

Religiosamente, a cada quinze dias, dava-nos a honra de sua visita. Vinha, por causa da ajuda que meus pais lhe davam; uma raiz de inhame, aipim, batata-doce, farinha e uns dois cocos, para que ela pudesse fazer moqueca de piabas pescadas por ela mesma no rio Jacarecica, à altura do poço do Zé Ramos, famoso pela quantidade de peixes ofertada quase o ano inteiro. Não sei dizer de onde ela retirava as forças necessárias para fazer o trajeto de volta, com uma trouxa sobre a cabeça trêmula, que a balançava para os lados, em movimento uniforme.

Aos poucos, acostumei-me com sua presença e, passado o medo, gostava de escutar suas estórias dos tempos antigos. Não falava nada sobre o seu passado, nem o de sua família, mas contava casos sobre pessoas que moraram próximo de onde ela residia. Sempre começava assim: “esse seu menino, num tá vendo”? e a estória era contada: falava de escravidão, das tormentas que os negros enfrentaram, no passado, para alimentar a mesa dos brancos...

Piamente religiosa, na quinta-feira santa, aparecia para pedir o “jejum da sexta-feira da Paixão”. Essa era a única viagem rápida que fazia, para não pecar na semana santa, envolvendo-se em pilhérias ou causos menos verdadeiros. Tinha retidão de intenção e se mortificava pela semana santa. Isso nem era preciso, pois sua vida inteira fora uma libação ofertada a Deus, no altar da miséria que grassava sobre os pobres, antigamente.

Meu pai, sabedor de que ela não gostava de se demorar, naquelas visitas de quinta-feira maior, punha-se a puxar conversa, a criar estórias, a fim de a entreter, para apurar se ela ainda guardava alguma noção sobre a vida ou a semana santa. Era bem idosa e não sabia contar os anos. Meu pai começava a lhe contar estórias leves e, de repente, colocava uma mais puxada a valentia, contando que certa pessoa havia contratado um jagunço para matar o primo, na manhã do dia seguinte, que seria sexta-feira santa. Subitamente, ela retrucou: “esse seu menino, num tá vendo? Vosmecê conhece esse dito sujeito? Ao que meu pai lhe respondeu: sim e sei onde mora. Por quê? E ela: “esse seu menino, num tá vendo? Diga a esse miserave para deixar esse prumo de matar gente amanhã. É pecado matar gente da sexta-feira Paixão! Diga a ele, pulo amor de Nosso Sinhô, que espere a Páscoa cessar. Senão ele vai para o inferno que nem Juda”!

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