A MESA DE SORTE PARA A OPERAÇÃO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 16 de Janeiro, 2021 - Atualizado em 17 de Janeiro, 2021

A MESA DE SORTE PARA A OPERAÇÃO

O Cajueiro é local de gente humilde. A muitos faltava o essencial para a subsistência, de modo que, numa quadra em que inexistia aposentadoria e assistência social, o único recurso era se valer da caridade alheia. A maioria era de gente pataqueira, cujo suor se derramava como um rio sobre a terra tórrida, durante nove ou dez horas por dia, a fim de poder levar para a boca dos filhos uma mão cheia de farinha e umas pilombetas recheadas de sal, a fim de se poder encher o bucho com água o dia todo. Onde a fome é muita, a água em abundância é de grande valia.

Um indivíduo abria covas cavadas para plantar inhame, a semana inteira, e, ao sábado, corria à feira, ainda de madrugada, a fim de encontrar o dono da terra para dele receber uns tostões. Por vezes, perdia-se a cabeça, esvaia-se o restinho do juízo que habitava os sofridos miolos que se lhe avolumavam sob o crânio, e rendia-se à cachaçada de um dia inteiro. Pronto! A semana seguinte seria de um penar de causar horror.

De quando chegava ao rancho onde morava, trazido por um cristão caridoso, até o outro sábado, ouvia ralhos da esposa e dos filhos mais velhos: “Peste! Vida miserável! Onde já se viu trabaiar tanto e passar uma semana de fome? Esse miséria é lá argum home! Tá é enxofrado de pinga. Quarquer dia eu me livro... terei sorte mió”, dizia a esposa, desesperada, sem ter do que se valer para alimentar os muitos bruguelos que botara no mundo. Nem farinha, nem pilombetas, nem uma franga... o remédio era dar uma volta na vizinhança, com a cara mais lisa do mundo, para pedir um bocado. Vinham muitos nãos, mas alguns sins que a faziam andar a pedir... se o rio tivesse uns jundiás, mas tá seco também. Com duas semanas após as chuvas, a cheia se foi...

Com uma trouxa de roupa à cabeça, punha-se a caminho do rio. O jereré era velho companheiro e servia de distração enquanto as roupas quaravam. Uns camarões, umas piabas, uns quatro ou cinco corrós. Quando tinha sorte, vinham umas traíras, para afortunar o almoço daquela semana perdida pela peste da pinga que o marido bebera na feira. Uma meia libra de sal, mais uma mão cheia de malagueta era o suficiente para que ninguém comesse muito, e pudesse aquela mistura render para a semana toda. “Sabo que vem, eu vou com esse peste, pra ver se ele vai beber gole. Hum”!

O homem adoeceu. Não aguenta arrastar a enxada; nem no bamburral, que exigia menor esforço, ele suportava. Sofria de uma dor insana. A esposa fizera um emplastro de mastruz, jurubeba, assa-peixe e sambacaitá, mas foi mesmo que água do pote. O pobre homem se contorcia e chegava a urrar. A mulher se viu obrigada a chamar a rezadeira, lá do Pamandu, para ver se o aliviaria. Nem a reza deu conta de aplacar a tormenta do pobre coitado. A esposa, pesarosa, chamou Dinda, afamado dono de terreiro, mas, ainda assim, não obteve sucesso.

O remédio foi colocá-lo numa rede, pendurada num caibro de marmeleiro, sobre o ombro de dois cabras fornidos, e conduzi-lo à cidade. O doutor disse, de pronto, que o caso é de operação. Nó na tripa. A cirurgia era particular, e tinha de desembolsar uns bons trocados. Esse negócio de doutor sempre foi pela hora da morte. Ao calor da emoção, a pobre senhora autorizou o procedimento: “Doutô, o sinhô faz e, no mês que entra, eu pago tintim por tintim. Vou fazer uma mesa de sorte”! E pensou consigo: Ruim com ele, pior sem ele. Como haveria de dar comida a essa filharada todinha? Se este traste morrer, eu estou mais perdida ainda!

Com cinco dias, o homem estava quase pronto para retornar para casa. Mas era preciso aguardar um pouco mais, pois os abalos da viagem, na rede ou na carroça, poderiam fazer muito mal ao corte na barriga. Pegara trinta e dois pontos. Foi uma operação de sucesso. Agora, era preciso cumprir o prometido ao doutor.

Ela saiu, de casa em casa, na vizinhança e nos povoados da redondeza. Passou nas bodegas, para avisar aos que se ajuntavam para um carteado ou para uns goles: vai ser domingo de hoje a quinze. Quem puder, leve um prêmio, que é para pagar a operação de Bebé! Vai ter bandeira e buquê, mas já estão oferecidos. Encomendou as bebidas no armazém de Euclides, os bolos a São José de Pedro, e o tocador era do Pé da Serra. Ele ofereceu-se para ajudar. Exigiu apenas uma quartinha de cachaça para o trio.

Seu Jerome foi o mesário e Meira de Arbaninho, o Falador. A mesa principiou quando o sol esfriou e foi além da boca da noite. Depois, o forró comeu no centro, até certas horas. As mulheres direitas foram para casa, mas alguns maridos permaneceram gastando e se divertindo com as disponíveis, de vida desimpedida. A mesa de sorte deu para custear a operação e para comprar o resguardo do miserável. Ali, sempre se presenciaram obras desse naipe, para ajudar os desvalidos. Sorte de Bebé em ter uma mulher que sabia organizar uma boa mesa.

Onde a pobreza beira à miséria, a solidariedade é troco do coração humano aos destemperos que a sociedade impões aos mais fracos. A mesa de sorte foi a marca da caridade e o socorro dos desvalidos, num ajuntamento de medonho sentimento de justiça e de partilha fraterna. A criatividade vence a miséria.

 

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