ALIMENTAÇÃO DE ALMAS

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 28 de Fevereiro, 2021 - Atualizado em 28 de Fevereiro, 2021

ALIMENTAÇÃO DE ALMAS 

Nossas terras também têm histórias e tradições muito bonitas. Pena que a cultura de importação se encarregou de incutir na meninada o cardápio “self service”, em que as escolhas são feitas, quase sempre, do lado errado. É melhor comer do que já vem prontinho, com atrativos especiais, do que preparar o próprio alimento. Assim, sob o ponto de vista cultural, é melhor mergulhar na onda virtual individualizante do que construir, em conjunto, o tecido cultural próprio. O que vem de fora parece ser melhor. Infeliz engodo!

Pois bem, para recordar um fato histórico movido pela piedade e devoção populares, regado a uma boa diversão e a uma cachacinha, nas décadas de quarenta a sessenta do Século Passado, a Terra Vermelha, o Pé do Veado, a Várzea do Gama, o Cajueiro, o Canário, o Congo e a Igreja Velha assistiam ao grande espetáculo da Alimentação de Almas. Aos domingos, numa bodega, os homens se combinavam sobre o começo, o horário e o local da alimentação espiritual. De casa em casa, as mulheres se visitavam e acertavam, após receberem a determinação do respectivo marido, o local do primeiro encontro. Tudo isso, no fim de janeiro ou início de fevereiro, a depender do início da Quaresma.

A Alimentação de Almas era reza de caráter penitencial, exigindo muito respeito, purgação dos pecados e intercessão pelos que já partiram. Por isso, a Quaresma era o tempo preferido, posto que se tratam de quarenta dias preparatórios para a Festa da Páscoa. A Igreja, com sua Liturgia em Latim, não atingia muito de perto os moradores das comunidades rurais, pois, além de as visitas do pároco serem escassas, a linguagem da Missa era muito complicada. Se o vigário fosse bom de sermão, ficavam umas poucas ideias assuntadas no miolo dos campesinos. Do contrário, a Missa passava, uma vez ao ano, como ato de fé sem conteúdo, pois não era compreensível ao matuto analfabeto. Daí surgiu a expressão para indicar desconhecimento: “Isso pra mim é missa”.

Novenas, Vias-sacras, Ofícios, Acompanhamentos e a Alimentação de Almas eram os adjuntos religiosos que maior convicção traziam, por falarem à alma do agresteiro. Tocavam-lhe o coração, pois falavam das coisas da terra, como a agonia, a dor, o sofrimento e a diversão. Eram temas familiares, vividos por cada cidadão dali do lugar. E a Alimentação de Almas, por ser de caráter penitencial, realizava-se sempre à noite, a partir das oito, e se estendia até a madrugada. Era um momento rico em detalhes, ritmos e melodias, com a inclusão de rezas longas e piedosas.

Juca de Zeca, que morava na Terra Vermelha, era o líder do grupo. Além dele, Manoel Corró, Adenoaldo e Paulo Saruê, estavam sempre à frente, cuidando para que nada de mal pudesse atingir as mulheres indefesas. Às vezes, os cães eram soltos para espantá-los. As mulheres e os homens se ajuntavam e saiam religiosamente às sete da noite de casa, para se dirigirem ao local combinado: a frente do cemitério ou de uma Santa Cruz. Ali, faziam umas preces, todos ajoelhados, e com o rosto encapuzado. Após uma meia hora em preces e lamentos, dirigiam-se à casa previamente acertada. Por vezes, o trajeto era pra mais de légua! O rito era feito à entrada da casa, com matraca, cantos e toadas penosas que levavam ao choro, por se recordarem nomes de parentes falecidos. No terreiro, em frente de cada residência, em meio ao mais sepulcral silêncio, a matraca prorrompia em barulho infernal. Imediatamente após, Juca vociferava; “acordai, vigiai, e orai, irmão meu! Deus te chama à conversão. Vinde rezar para salvar as almas dos teus irmãos”. As Mulheres respondiam: "Deus vos chama à penitência. Examinai vossa consciência. Alevantai-vos ajoelhai-vos, pela santa Clemência". Mais à frente, entoavam o lamento: acordai e orai, meus irmãos. Fazei Jejum e orai, que é sexta-feira da Paixão. Se o morador acordasse e se dispusesse a acolhê-los, abria a porta, punha-se de joelhos, com toda a família, e acompanhava todo o lamento. À hora em que as carpideiras pronunciavam os nomes dos falecidos, as lágrimas dos familiares se assemelhavam a torrentes fervilhantes. A emoção cobria de saudades e de boas recordações cada ajuntamento desses.

O conteúdo das rezas era religioso, permeado de expressões da cultura popular, como o castigo divino, a mancha do pecado original, o purgatório e a obrigação de se autoflagelar. Daí o nome Alimentação, pois as preces alimentavam, ajudavam as almas penadas saírem do purgatório e subirem até o céu. Os lamentos, à moda das antigas carpideiras davam um tom doloroso ao ritual, a ponto de as pessoas se desmancharem em lágrimas. Havia quem desmaiasse e ficava o tempo todo em êxtase, pelo tom sombrio das rezas. algumas mulheres traziam consigo galhos de manjericão, o que dava um suave odor ao ambiente.

Depois de uma hora de lamentos, súplicas e cantorias acompanhadas pela matraca, a dona da casa lhes aprontavam um café com bolachão ou bolo de aipim. Era uma forma generosa de lhes agradecer, pelo refrigério que vieram oferecer à família. Dali por diante, a cachaça comia no centro e o resultado eram alguns bêbados, cuja ressaca deveria passar até o próximo início de noite, quando tudo haveria de se repetir.

Não se sabe ao certo quantas almas foram alimentadas. Mas, o que mais importava era a preservação de uma cultura herdada dos portugueses e que, paulatinamente foi substituída pelo conteúdo das telinhas. A alimentação de Almas, neste torrão agresteiro, passou para os rincões de uma memória remota e esvaziada, pouco a pouco.

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