SERMÃO DO ENCONTRO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 21 de Março, 2021 - Atualizado em 21 de Março, 2021

SERMÃO DO ENCONTRO

A piedade popular fez desenvolverem-se inúmeros atos para litúrgicos que ganharam forma na chamada Semana Santa. E a razão é óbvia: a Liturgia Oficial da Igreja era celebrada em Latim, uma língua distante da vida da população sobretudo do vulgo. Setenário das Dores, Depósito do Senhor dos Passos, Depósito de Nossa Senhora das Dores, Via-Sacra, Ofício das Trevas, Sermão do encontro, Sermão das Sete Palavras, Sermão do Descendimento da Cruz, Sermão da Soledade de Maria e Sermão do Triunfo. Todos esses atos têm, ainda hoje, lugar em algumas comunidades mais tradicionais.

Em geral, tratam-se de formas mais próximas do povo, um modo de expressar as agonias da vida, na agonia de Jesus, nos instantes finais de sua existência terrena. A esses atos as pessoas acorrem com mais fervor do que aos atos litúrgicos. É que eles expressam a aspereza de uma vida inteira, sem qualquer refrigério. Os pobres jejuam frequentemente, sobem ao Calvário, com inúmeras cruzes às costas, experimentando dores, traições, cusparadas, coroas de espinhos, no dia a dia de sua dramática arte de viver.

No Pé do Veado, em meados do século Passado, Dona Cecília, uma vitalina de mais ou menos sessenta anos, era catequista das antigas. Cultivava o hábito da Via-Sacra, com um tom lúgubre e afeito ao sofrimento. Era uma senhora pobre, que viva de cultivar flores e legumes para a subsistência. Nunca aprendera a ler e a escrever, mas sabia de cor todas as orações da Igreja, além das rezas devocionais a que era bem afeita.

Na quarta-feira santa, punha um feixe de lenha sobre uma rodilha e, do Pé do Veado, rumava a pe (descalço) à Igreja Matriz de Santo Antônio, onde fazia suas fervorosas preces, sem retirar o lenho da cabeça. Ajoelhava-se e delongava-se em oração, para se penitenciar. Ato contínuo, dirigia-se ao local onde se encontrava a Imagem de Nossa Senhora das Dores, para seguir as quatro estações da Via-Sacra, juntamente com inúmeras mulheres que vieram para o mesmo fim.

Ao ensejo da quarta estação, punha-se de joelhos, sem qualquer proteção à pele ressequida pelo sol e pelo tempo, e se punha de pé somente quando o pregador encerrava o famoso sermão, entoando o "Senhor Deus". A depender do orador sacro, o sermão prolongava-se por mais de uma hora. A velha catequista permanecia, por esse ínterim, de joelhos a chorar seus pecados, ou, talvez, comovia-se com os sofrimentos atrozes descritos pela voz do pregador. O coração da piedosa senhora se recordava de tudo: do sofrimento que seus pais enfrentaram, por serem pobres e descendentes de escravos; a falta de opções, a pouca terra para plantar; a inexistência de um gadinho, de uma criação qualquer que fosse; o trabalho insano, desde a mais tenra idade, a lida da casa e as idas à fonte, para encher o pote. Sua vida passava inteirinha ali, no fio da memória, encontrando alívio e fundamento nos ocorridos com o Filho de Deus. comparava seu sofrimento ao Calvário de Jesus. E se derrmava em pranto contínuo e duplamente dolorido.

Uma alma generosa vinha-lhe ao encontro com uma caneca d’água fresca, mas ela só a aceitava ao fim do ato. Não poderia ter refrigério algum, senão o que Nosso Senhor recebeu de Verônica, que Lhe enxugou a Sagrada Face. De quando em quando, com o suor escorrendo, ela se refazia com um lenço embranquecido pelo anil, e nada mais. Outra amiga, compadecida, pela compleição franzina de Cecília, estendia-lhe a mão, para lhe servir de apoio, ou lhe oferecia as sandálias, para calçar os magérrimos joelhos, e recebia um não: “não é desfeita; é que devo purgar meus pecados... mais sofreu Jesus, pobrezinho”!

Certo vigário, percebendo que os olhares estavam se direcionando mais para vitalina piedosa do que para o pregador, foi-lhe ao encontro e lhe advertiu: “a senhora precisa se levantar. Não é necessária essa penitência toda... está chamando a atenção, mais do que as sagradas imagens... é inconcebível”! Então ela, com toda a humildade, dirigiu-se ao vigário: “meu bom padre, Vossa reverência pode até entender de Deus, mas não de meus pecados; dizer-me que já está encerrada a minha penitência, isso é demais. Quando o Senhor nasceu, eu já era pecadora; quando o Senhor entrou para o Seminário, eu já fazia minha penitência anual... eu aprendi primeiro do que o Reverendo. Não me leve a mal. Deixe esta pobre alma penar um pouco mais. No ano que vem, faça o senhor mesmo o Sermão. Ninguém vai dar por mim, pois o Reverendo é um excelente orador! Só Deus compreende o que faço. Não é para me mostrar, nem para atrair olhares; faço apenas o que meus pais me ensinaram...”

Cecília encontrava, naquela cena anual, as razões para tocar em frente o sonho de ser santa, pura e casta. Não via diante de si razões para viver por si mesma. Sabia que sua vida estava em Deus e dependia do Criador-Redentor. Assim, viveu até o dia em que descansou. Mas, enquanto forças teve, participou no ato religioso, penitenciando-se do mesmo modo, pois, em seu interior havia razões que a própria fé da Igreja não dava conta de compreender.

Certamente, não só pelas idas ao Sermão do Encontro, mas por uma vida austera, rigorosa em demasia, a velha catequista do Pé do Veado e região se encontrou definitivamente com Deus, deixando à vizinhança um rastro de fé e de devoção. E, simplesmente a seu modo, evangelizou e fez muitas pessoas se encontrarem com Jesus. Quantas Cecília existiriam atualmente?

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