UM PNEU PARA BRINCAR

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 08 de Outubro, 2021 - Atualizado em 08 de Outubro, 2021

UM PNEU PARA BRINCAR

 

Na mente pueril os sonhos se aguçam e se avantajam tanto que, quando menos esperamos, estamos a balbuciar sons, imitando carros, ou outros objetos de desejos ardentes, que nos invadem o coração. Assim se deu comigo, com meus irmãos e com meus amigos que dividiram a infância áspera de meninos da roça, com pouco prestígio e quase nenhum dinheiro.

O primeiro brinquedo que recebíamos era uma enxada desgastada pelo uso, pequena, leve, disposta a exercitar os minúsculos músculos de um bracinho raquítico, imerso em subnutrição... Às vezes, o cabresto, a corda de caroá, para ensaiar os primeiros contatos com feixes de capim, de rama, de manivas, de lenha ou de garranchos. Era dorido ser criança, num tempo carrancudo, num ambiente marcado pelo desejo de vencer a vida pelo esforço descomunal de quem não tinha pena de si.

Meninos, na minha época, nasciam com um pé na malhada. Ainda não havia desmamado e eu já estava semeando rama, milho, feijão, amendoim, catando pedra (que vinha no esterco de gado do sertão!), recolhendo beldroega (berduégua!), marianinha e outras ervas más que insistiam em ganhar a luta contra nós, na invasão prejudicial à fraca lavoura.

Meninos de minha época nunca deixaram de brincar, mas não ganhavam brinquedos. Eram inventivos, criativos, transformadores de tudo o que poderia se tornar entretenimento: uma pindoba, uma folha de bananeira, uma “buzina” de coqueiro, uma forquilha (furquia!), uma pedra, um cordão... tudo era instrumento apto a divertir, a entreter, a ajudar a passar o tempo, nas poucas horas de refresco, aos domingos.

Bicicleta era para gente grande... velocípede, para filho de rico, na cidade grande. Carrinhos, só os de madeira, feitos em casa, de forma improvisada. Bois de barro, carrinho-de-boi, carroça, caminhão pau de arara (imitando o de Fransquinho de Chiquinho!), ou uma meia cheia de pano, para intuir ser uma bola de verdade, eram suficientes para a farra dominical, embaixo das mangueiras encopadas, de boa sombra. Os galhos serviam para os balanços serem dependurados... a diversão corria à solta até o sol de por.

Mas, divertido mesmo era pegar um pneu velho, de preferência maiorzinho, empurrá-lo com um pedaço de ripa, dando-lhe velocidade descomunal que, mesmo esticando ao máximo a canela, não podíamos alcançá-lo, nas descidas de grotas ou na estrada carroçal. Se viesse alguém desavisado, numa curva da estrada, certamente seria atropelado, e a encrenca dava pano para as mangas. Essa era a razão, pela qual, meu pai nos proibia de brincar de pneus. Não via com bons olhos os perigos daquela brincadeira à toa.

Meninos da minha época desobedeciam, também, mesmo sabendo que a surra já estava encomendada... por isso, os outros, da vizinhança, traziam consigo o pneu. Nós brincávamos, mas se nosso pai estivesse por perto, nem pensar! O correão comeria cru... a pele esquentaria, arderia...melhor não provocar. Até a desobediência deve ser milimetricamente calculada, para não correr o risco de umas pancadas fora de época.

O tempo passou, veio a modernização das brincadeiras, e os jogos eletrônicos se encarregaram de trancafiar as crianças, em seus quartos, no sofá ou na poltrona. Meninos e meninas não conversam, nem tramam estripulias, nem demoram para retornarem às casas de seus pais... só falam termos em japonês ou em inglês... não inventam, nem transformam, mas recebem (e como recebem!) tudo prontinho.

Por mais encantadores que sejam os modernos jogos eletrônicos, eles nunca assistirão ao doce e meigo espetáculo de se vivificar um simples pneu velho, dando azo à imaginação, para o transformar num possante! Nunca verão as pedras se transformarem em vacas, nem as manguinhas verdes, em bois, nem as folhas de pindoba virarem sanfonas... a rudeza tem seus encantos e deixa fincadas, no chão da saudade, marcas de um tempo sem volta.

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