A VILA VINTÉM

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 27 de Maio, 2022 - Atualizado em 29 de Maio, 2022

A VILA VINTÉM

 

No começo, era uma imensidão de terras, com florestas e rios, com montanhas e vales que poderiam muito bem descrever a ideia do Edem. Havia clãs que cultivavam o indispensável à subsistência, destituída da voracidade de lucro ou da exploração alheia. Havia rituais de iniciação, de passagem, de inúmeras comemorações, aos quais se poderia apodar de ritos de celebração à vida em comunidade. Era um tom de harmonia que se visualizava entre o verde escuro das matas, o azul do céu e o brilho nos olhos da meninada que vadiava sem parar nas trilhas e veredas.

Animais ferozes, que sempre foram uma ameaça, conviviam em seus respectivos habitats, territórios nunca invadidos pelas pessoas que com eles dividiam a vastidão dessa admirável riqueza. A terra, sob o olha dos autóctones, era a mãe querida, tratada com zeloso respeito e com reverente admiração. Não se imaginava que um dia, pudesse ser maculada, explorada e solapada em sua dignidade, para se apresentar desnuda, doente, infértil, em decorrência das indesejáveis visitas recebidas, como que a condenando a eterna submissão. Valores outros deram lugar a tudo o que ali se poderia descrever como o Paraíso.

Na Vila, de nome Formosa, cuja regra única era a harmonia entre seus integrantes, havia discórdias que se resolviam à base da consulta aos sábios, experientes mestres que tinham respostas concretas na ponta da língua, autênticas lições de vida, sem nada barganhar, sem nada esperar em troca, senão apenas a felicidade dos habitantes e o crescimento do respeito às Tradições. Estas eram consagradas pelos costumes que melhor poderiam definir a vida em comunidade. Sábio, no lugar, não era quem pretendesse levar vantagens, mas quem se dispunha a servir e a favorecer a felicidade de todos.

Um fato triste deu início ao fim da harmonia com a natureza: chegaram pessoas com dinheiro, com manhas e barganhas, e se puseram a destruir as árvores, a sulcar o solo, a retirar metais e a destruir a fauna. Os animais, que viviam a respeitar o ambiente humano, e vice-versa, agora, assustavam, sob a ameaça que lhes era imposta. Começou-se a usar bebidas, distintas daquela dos rituais, que passaram a tirar o respeito entre as pessoas. Assassinatos, roubos, traições, barganhas, tudo isso veio com os estranhos povos que invadiram a terra.

Em poucos dias, a vila já tinha outro nome: Risca Faca! Nome que lhe veio a calhar, pelo brutal comportamento dos moradores. Já não se pretendia a convivência fraterna, mas a grande maioria era levada pelos novos ideais, sob a égide de desenvolvimento. As árvores viraram dinheiro, e a terra era disputada a baionetas e a sangue. Trouxeram outra gente para ser submissa, forçada a trabalhar e a produzir, sem ter direito a nada. Cresceram os problemas, aumentaram os lamentos, a opressão grassava solta, vitimando crianças, jovens, adultos e anciãos. Acabou-se a harmonia.

Um grupo, com ideias revolucionárias, tornou a aldeia independente, mas às custas de outros povos. Mudaram até o nome para VINTÉM, pois se acreditava que “a terra, em se plantando tudo, dá...” e plantaram desrespeito, violações, crimes, usurpações. Neste ínterim, constituíram intendente, com câmara e tudo o que nos outros lugares havia. Os vintenenses foram obrigados a entregar a metade do que produziam, para manter os seus governantes... A cada ano, a Vintém deixava-se cair na amargura do sucateamento... tornou-se motivo de chacota entre os outros povos que a vinham como terra sem lei.

Com a chegada do progresso, visando a maior produtividade, permitiram a derrubada das árvores, o engrandecimento das criações, o aterramento dos igarapés, dos córregos e riachos... nascentes desapareceram e começou a faltar capim para os burros de carga. Carros de bois substituíram os tropeiros... a circulação de produtos encareceu, porque a ração da corte é a preço de ouro. Os intendentes mudavam apenas de nome, mas o modo de ser conduzidos pelo ouro, pelo açúcar e pelo sangue dos vintenenses continuava sendo o mesmo.

Houve revoltas, numa rua e noutra, mas todas abafadas à forca e a baionetas. Não se investiu em escolas, mas em fábricas de pólvora que se multiplicaram a uma velocidade incrível. Era o melhor que a intendência poderia apresentar aos seus súditos. A situação chegou ao caos, pois faltou palha para se fazerem tetos, faltou farinha para o angu, faltou erva para os chás, e os curandeiros foram acusados de feiticeiros, contrários à boa prática da religião que trouxeram os donos da Vila... Tudo em nome da Ordem, do Respeito e da Família. A vila estava na lama...

Moradores apostaram na violência patrocinada por integrantes da Intendência, mas às ocultas, pois era preciso passar a ideia de que é nas pontas das ruelas, onde faltavam palhas, tetos, farinha e ervas de cura que a violência impera. É lá, e não nas estruturas da intendência, que há contrabando, descaminho, desvios de verbas e abusos de autoridades.

A intendência até criou um aparato de justiça e de Praça, para garantir a ordem. Os Praças, em geral, pertencentes ao nível dos moradores das ruelas, são pessoas do bem. Alguns, em tanto, se julgam no nível dos integrantes da intendência e não entendem o que o povo passa; quando abordam um Vintenense das ruelas, usa de atrocidades, como atirar para matar, usar gás, na gaveta da carroça, onde jogam os “malfeitores”, tudo isso em nome do bem. Bem nunca mais houve, na Vintém.

Mas, o progresso vai bem, sem respeito à vida, sem, instrução e sem ofício para todos. Apenas os mais afeitos ao “bem” têm o bem que deveria habitar as ruelas da Vintém. “Deus Tenha Misericórdia da Vintém” disseram certa feita, um “homem do bem” patrocinador do nada que é a Vintém.

 

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