Do treino ao chuveiro (Por Mateus Melo)

Conto de terror

Mateus Melo, 31 de Julho, 2020

Do treino pro chuveiro

Foi logo após o treino que havíamos tido durante uma daquelas tardes no verão de 1975. Tarde aquela que, como suas convizinhas, lembrava uma fornalha, tanto pela quentura causticante, e mais ainda por sua rigidez imponente. No decorrer do treino, fui bruscamente empurrado por diversas vezes, e sei que não foram desprovidas do cúpido desejo do embate. Rilho os dentes até agora, ao lembrar daquela tarde... Rilho-os como nunca antes até àquela oportunidade. Todos os esbarrões, sem exceção de nenhum, meu amigo, NENHUM! (não estou sendo hiperbólico, sou e tenho sido sincero ao escreverte), deixaram de ser eivados do propósito infantil e perturbador.

Pensei por um momento e decidi que não os revidaria ali, no momento de mais quente furor, mas que, no entanto, guardaria toda a cólera para momento oportuno. Nunca fui bom de briga, nem muito chegado a trocar socos ou qualquer agressão com ninguém, mas sabia me defender. Mantive-me com a ideia acertada de não revidar de pronto. Toda a taça de cólera que enchi em meus pensamentos estava destinada a dá-lo a beber, e beberia, ah como beberia... De largos sorvos beberia... Porém, se tem algo que aprendi com minha família, nesses poucos anos de convivência, foi que a vingança deve ser paciente e fria, ouso acrescentar, gelada.

O treino finalmente acabara, fomos todos ao chuveiro. Durante o momento do banho, demorei demasiadamente em cada parte do alívio produzido pelo cair lento e ressoante da água em minha mente. Essa fábrica de maquinações vingativas. Na medida em que a água fria ia caindo em minha cabeça, o furor colérico só aumentava sua temperatura e sua intensidade. Engraçado que mesmo com todo esse fervilhar da vingança em meus planos, o desejo mais frio e calculista, aproximava-se. Mais perturbador do que outrora havia sentido. Turbilhão de ideias me afluíram, mil maneiras de vingar os esbarrões infantis no jogo... Todas essas ideias imersas no único propósito, revidar os esbarrões inexplicáveis daquele infame.

Não o conhecia muito bem, sabia só seu nome, procurei saber entre os meus amigos, afinal quem quer que ele fosse, deveria ser identificado antes de ser punido. O cretino trazia por nome Sebastião, apelidado por Cão, devido ao seu vasto histórico do típico valentão de ensino médio. Orgulhava-se por suas imbecilidades com alunos mais fracos, opressor tanto quanto você pode imaginar. Espécie de lixo humano. Para o bem de todos, o dia em que ele entrou em meu caminho, deveria ser o último.

Geralmente eu tomava meu banho, após os treinos, ao lado dos meus amigos, afinal não tem melhor momento pra se conversar dos melhores lances da partida, ou até zoar dos erros alheios. Era divertido. Nesse dia, porém, não quis conversa, procurei o chuveiro mais próximo do Cão. Veio-me vários pensamentos, como esperar ele sair dali, pegá-lo ali mesmo... Mas decidi por analisá-lo. A raiva era grande? Sim, era. Penso que não o suficiente para tirar-lhe a vida, mesmo achando que seria sem problemas e que a vida daquele cretino não valesse tanto ser protegida. Como nunca matei – oportunidades não faltaram – temi pela inexperiência. Decidi que seria só um corretivo.

Lembrei-me, nessa hora, que nunca fui bom de briga, e que ele era versado na troca de socos, haja vista o seu histórico agressivo. Pensei ser melhor agir com inteligência e até covardia, ninguém liga, ele foi covarde comigo também... O observei tanto que se algum amigo meu me visse, acharia que estaria olhando pra ele com outras intenções e poderia até virar chacota entre os meus amigos. Aí seria raiva acumulada demais. Mas ninguém me olhava, permaneci a analisá-lo.

Aos poucos meus amigos e os outros colegas de time foram saindo do banho e indo pro vestiário. Eu estava enrolando um pouco. A sorte ajuda aos justiceiros e aos loucos, nesse instante eu ainda não havia me adjetivado quanto à nenhuma destas opções. Ele acabou ficando por último, seus amigos haviam já saído. Ao me ver, deve ter lembrado dos empurrões que havia me dado durante o treino, com uma feição diabólica e sarcástica fitou e nos seus olhos pude ler: OTÁRIO. O já conhecido furor retornou como nunca dantes. Imagino até o rubor de meus olhos, naquela patética e cretina encarada. Não esperei mais, o melhor plano de ataque é atacar primeiro. Puxei-o por trás, seus pés estavam ainda molhados e restava no chão do box um pouco de sabão, seus pés vacilaram, eu não pude contê-lo – acho até que o empurrei mais um pouco pra frente, não lembro – ele por azar deu com a cabeça na rodinha de ferro que acionava o chuveiro.

Caiu de pronto, muito, bastante sangue o envolveu rapidamente, liguei o chuveiro. A raiva é sensacional, até o momento em que ela é concretizada, após fiquei desamparado, podia contar apenas com minha inerente frieza, cultivada a duras penas. Ao ver o infeliz no chão, desacordado, ficando cada vez mais branco e inerte, um pouco de consciência que eu possuía tomou o controle. Fiquei com medo, temi pelas consequências. Resolvi que iria mentir. Afinal, ninguém sentiria falta daquele Cão mesmo...

Comecei a gritar e a chorar cinicamente, gritei bastante até os outros do time, no vestiário que ficava ao lado, ouvirem e correrem para testemunhar o motivo de tanta gritaria. Ao chegarem, eu comecei a produzir lágrimas, lágrimas de medo, não de remorso ou tristeza. Ele teve o fim que merecia. O importante agora era explicar que ele caiu sozinho, escorregara sozinho, eu nada pude fazer para ajudá-lo. Assim, ficaria aceitável para ambas as partes.

Escrevo-te agora, não por arrependimento ou qualquer tipo de sentimento de culpa, mas que por ser seu filho, você deveria saber como de fato a morte dele aconteceu. O cretino que fora em vida, também foi na morte. De um legado assim, ninguém sente orgulho. Reze por ele, caso seja religiosa, caso não seja, somente chore.

Ou como eu, ria, ria bastante, afinal uma cruz a menos para termos que carregar. 

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