Influência de famosos, estímulos cerebrais e ausência de regulamentação fazem das “bets” uma ameaça à saúde mental e ao equilíbrio financeiro da população
As chamadas “bets”, ou apostas digitais, são plataformas virtuais nas quais os usuários podem apostar dinheiro de verdade em resultados de diferentes tipos de jogos, como partidas esportivas, roletas, caça-níqueis e jogos rápidos que fazem sucesso nas redes sociais. Com a promessa de lucros rápidos e acessíveis, essas plataformas conquistaram o público brasileiro, principalmente os mais jovens. No entanto, o que parece ser apenas uma forma de lazer tem deixado um rastro preocupante de dívidas, abalos emocionais e até registros de suicídio.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os distúrbios associados ao jogo atingem entre 1% e 6% da população global. No Brasil, a situação se agrava: dados da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) apontam um crescimento superior a 300% nos atendimentos voltados a pessoas dependentes de apostas, nos últimos cinco anos. Casos extremos, como perda total de recursos financeiros e tentativas de suicídio, são frequentemente relatados por especialistas em saúde mental.
Um levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que, desde 2022, ao menos 42 suicídios no país estão diretamente relacionados a dívidas originadas por jogos de apostas digitais. As repercussões ultrapassam o indivíduo e se estendem à família, afetando também o rendimento escolar, o desempenho no trabalho e os vínculos sociais.
Como o vício se instala
A psicóloga e docente do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit), Ana Karolina Silveira, explica que a dependência em jogos de apostas decorre de uma combinação de fatores emocionais, sociais e comportamentais. “Indivíduos com dificuldade em lidar com frustrações, impulsivos ou que procuram sensações intensas como forma de aliviar tensões emocionais são mais propensos ao vício. Além disso, vivências marcadas por abandono, autoestima fragilizada ou instabilidade emocional elevam o risco. Não existe um perfil único, mas sim um conjunto de vulnerabilidades que se somam”, afirma.
O risco se agrava nos jogos de resposta rápida, com apelo visual, que entregam resultados instantâneos. “Cada aposta ativa a liberação de dopamina no cérebro, substância ligada ao prazer. Em jogos rápidos, essa resposta é intensa e contínua, incentivando a busca constante por essa sensação, mesmo quando o jogador acumula perdas. O cérebro passa a associar o jogo a uma recompensa potencial, ainda que as perdas se repitam”, diz a psicóloga.
Ela acrescenta que o que mantém o jogador envolvido não é necessariamente o ganho real, mas a expectativa de ganhar. “O sistema de recompensa cerebral se alimenta da antecipação do prêmio, e não apenas do resultado positivo. Isso cria uma falsa percepção de controle, como se a persistência fosse garantir o sucesso em algum momento. Essa ilusão prende a pessoa em um ciclo de tentativas de recuperar o que perdeu. A culpa e a vergonha, por sua vez, dificultam a procura por apoio e o rompimento com esse comportamento”, ressalta.
Papel das redes e influência de celebridades
Com o aumento das denúncias e o agravamento dos problemas financeiros e emocionais vividos por milhares de brasileiros, o Senado instaurou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Apostas Esportivas. A comissão busca apurar os impactos causados por essas plataformas, a atuação de influenciadores em campanhas publicitárias milionárias e possíveis distorções de informações para atrair novos apostadores.
Entre os nomes convocados para depoimentos está o da influenciadora Virginia Fonseca, que acumula mais de 50 milhões de seguidores e foi citada por divulgar uma empresa de apostas em suas redes sociais. A presença de figuras conhecidas na CPI levantou questionamentos sobre a responsabilidade ética desses influenciadores e evidenciou a falta de regulação na divulgação de conteúdos ligados a jogos de aposta.
Na visão da psicóloga, a exposição contínua a vídeos de influenciadores ostentando ganhos financeiros através das apostas – muitas vezes simulados ou editados – contribui para uma percepção distorcida da realidade. “Esses materiais ativam sentimentos como ansiedade, impulsividade e o desejo de se encaixar. Os jovens, principalmente, se identificam com esses criadores de conteúdo e passam a enxergar as apostas como uma forma legítima de alcançar status e sucesso”, pontua.
Ana Karolina enfatiza que o contato repetitivo com esse tipo de conteúdo cria a sensação de que vencer é uma questão de insistência. “Isso reforça a ideia equivocada de que é possível prever ou controlar o jogo, o que leva muitos a continuarem apostando, mesmo acumulando perdas. Essa distorção da realidade é um dos principais fatores que sustentam o comportamento compulsivo”, destaca.
Impactos emocionais e invisibilidade do sofrimento
As consequências ultrapassam a esfera financeira. Segundo a docente da Unit, os impactos emocionais do vício incluem sentimentos de culpa, vergonha, afastamento social e, nos casos mais graves, depressão e pensamentos suicidas. “Já acompanhei pacientes com a vida devastada por esse tipo de jogo. O sofrimento vai muito além da perda de dinheiro e inclui um ciclo de autodepreciação, prejuízos nas relações e um grande isolamento. Muitas vezes, essas pessoas são vistas como mentirosas ou manipuladoras, mas, na verdade, estão adoecidas e não sabem como pedir ajuda”, relata.
Ela afirma que o problema não é falta de caráter ou irresponsabilidade, mas sim uma condição de saúde que exige acompanhamento especializado. Para Ana Karolina, a prevenção deve começar cedo, envolvendo família, escolas e campanhas educativas. “É fundamental promover o diálogo, trabalhar a inteligência emocional e desenvolver senso crítico. É papel das famílias e das escolas tratar o assunto de forma clara e acessível. As campanhas públicas também devem informar, regulamentar a exposição a esse tipo de conteúdo e oferecer apoio às vítimas. Quanto mais cedo começarmos, maiores as chances de proteção”, aconselha.
Do ponto de vista ético, a responsabilidade é grande. Ao divulgar esse tipo de conteúdo para públicos suscetíveis, os influenciadores podem contribuir para a normalização de comportamentos prejudiciais. A psicologia reconhece o poder da influência digital e defende um maior cuidado com o conteúdo promovido.
“Regulamentar é essencial, mas isso precisa vir acompanhado de ações educativas. É necessário restringir a forma como essas mensagens chegam aos usuários, principalmente os mais jovens, e oferecer alternativas de informação confiável. Plataformas digitais, influenciadores e profissionais de saúde mental devem ser envolvidos nesse debate. Prevenir é sempre mais eficaz do que remediar”, orienta.
O crescimento das apostas online no Brasil exige atenção urgente da sociedade, dos legisladores e das plataformas. A CPI das Bets evidenciou não apenas o impacto econômico desse fenômeno, mas, sobretudo, como o sofrimento emocional tem sido negligenciado em nome do entretenimento. “Enquanto empresas e influenciadores acumulam lucros milionários, milhares de brasileiros travam uma batalha silenciosa contra a dependência, a dor psíquica e a solidão”, conclui.
Fonte: Asscom Unit