Itabaiana – 350 anos. Primeira infância.
(por Antonio Samarone)
Nasci dentro do catolicismo romano. Batismo, crisma, primeira comunhão e catecismo, tudo no tempo certo.
Até o nome, foi uma promessa de mamãe: “se o primeiro filho for homem, receberá o nome de Santo Antonio.” Eu era para me chamar Antonio Fernando. Só que na hora de registrar no cartório, papai esqueceu do Fernando. Para evitar confusão, papai nunca disse em casa.
Fiquei Fernando até os 11 anos, quando precisaram da minha certidão de nascimento, para a matrícula no Ginásio, descobriram o esquecimento de papai.
Mamãe me queria padre, como toda camponesa. Quase entro no Seminário de Carpina, Pernambuco. Matrícula feita, viagem marcada. Na hora do enxoval ouve um impasse. Na lista de exigências do seminário incluia 20 guardanapos de pano. Lençol, fronhas, toalhas, escova, pasta de dente, cuecas, meias, tudo arrumado. Faltavam os Guardanapos. Lá em casa ninguém sabia do que se tratava. O que é guardanapo? Mamãe saiu perguntando as amigas na Rua do Fato. Ninguém sabia.
Mamãe, zelosa com o filho, tomou uma decisão: – “não tenho filho para passar vergonha. Como não sei do que se trata, não tenho como arrumar esses guardanapos. Desse modo, ele não vai.” Deixei de ser padre por essa besteira. A essa altura, poderia ser um Cardeal ou, no mínimo, um Monsenhor.
A fé entra pelo ouvido (fides ex auditu), escreveu São Paulo aos Romanos…. Não concordo, a fé entra mesmo é pelos rituais. Eu gostava do espetáculo das procissões, dos quatro tipos: das festivas ou jubilares, a mais importante era a de Santo Antônio; das rogativas, pedindo uma graça, geralmente chuva; das de desagravo, participei de uma, quando numa Santa Missão, ofereceram capim a um frade; e das gratulatórias ou de agradecimento.
A Procissão era um momento especial para se fazer e se pagar as promessas. Eu gostava dos cânticos antigos, sobretudo o “Queremos Deus” (Queremos Deus, homens ingratos/ Ao pai supremo, ao redentor/ Zombam da fé os insensatos/ Erguem-se em vão contra o senhor…).
Os fiéis se arrumavam em filas indianas, a cada lado rua, sem atropelamentos, todos obedeciam a uma ordem, quase natural. Na frente, puxando a procissão, iam às Irmandades e Congregações.
Em Itabaiana quem puxava eram os Irmãos das Almas, liderados por Zé Bigodinho. Todos homens, com camisas verdes, carregando círios acesos.
Eram seguidos pelas Filhas de Maria, todas de branco, carregando uma fita de cetim azul-celeste sobre o peito. Mamãe era dessa fila. Depois vinham as demais irmandades, todas com os seus estandartes e galhardetes. A Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, com as suas fitas vermelhas, sempre fazia bonito.
Depois os fiéis e as beatas menos graduadas. Muita gente pagando promessa com os pés descalços, carregando pedra na cabeça; outros trajando luto fechado, hábito franciscano, cada um cumpria as obrigações assumidas. Promessa é dívida, pelo menos para os devotos.
No centro do cortejo o clero e os seus auxiliares. Padres, sacristão, coroinhas, devotos mais chegados. Todos esses iam à frente do andor do Santo. Carregando o andor, homens de prestígio. Não me lembro de mulheres carregando o andor, parece que não era uma tarefa feminina.
Atrás do andor a banda de música, os políticos, autoridades e os graúdos da cidade. Não era lugar para a arraia-miúda, mesmo assim, sempre lotava com um magote de puxa-sacos.
Os meninos brancos e ricos saiam fantasiados de anjos. Aqui tive a minha primeira decepção com a Igreja: mesmo sendo um devotinho assíduo, nunca me convidaram para ser anjo de procissão, nem para o lava pé da quinta-feira maior. Depois descobri que quem escolhia os meninos era Maria Tavares.
Nas ruas, por onde passava a procissão, o povo se arrumava, pendurava toalhas bordadas nas janelas e, quem tinha, botava um jarro de flor. Juntavam-se os vizinhos e ficavam comentando as novidades. Fofocas e futricas. Vendo quem estava acompanhado de quem, as roupas e os cabelos de quem passasse. Quando se fazia um comentário inconveniente sobre alguém, sempre se precedia um “Deus me perdoe” ou “não é falando não” ou “eu não gosto de fofoca, mas”… E metia-se a bomba.
Antonio Samarone – médico sanitarista.