A humanização do mercado das doenças.
Por Antônio Samarone
A medicina de mercado avança no Brasil. O desmantelamento do SUS é parte desse jogo. O setor saúde representa 9,7% do PIB, tornou-se um importante ramo da economia. É uma constatação. Não se trata de um viés ideológico.
A medicina passou do ócio sagrado (sacerdócio) à negação do ócio (negócio). Para se transformar em mercadoria, o serviço médico precisou tornar-se impessoal, padronizado, previsível e quantificável. Os investidores precisavam avaliar antecipadamente os lucros.
Mercadoria é a forma como os bens e serviços circulam nas economias capitalista.
Na medicina artesanal do século XX, os médicos cuidavam das pessoas. O cuidado era a forma dominante dos serviços médicos. A transformação desses cuidados em mercadoria enfrentou resistências. Os cuidados são subjetivos. Qual foi o caminho?
Em algumas especialidades, a resistência em produzir mercadorias é inerente a natureza desses serviços. Por exemplo: na geriatria, pediatria, cuidados paliativos, psiquiatria. Não que seja impossível, apenas encontra mais resistência.
A medicina trocou o atendimento ao doente (pessoa) para o atendimento à doença (objeto). Em seguida fragmentou o cuidado em procedimento, viabilizando a sua transformação em mercadoria. A medicina de mercado é fundada no lucro, como qualquer atividade econômica.
A preocupante desumanização da medicina foi a troca do enfoque no doente pelo enfoque na doença. Isso é fato. Qualquer iniciativa de humanização que omita esse ponto é encenação inócua.
Nesse processo acelerado de mercantilização, o papel das escolas médicas é justificar o consumo de qualquer procedimento como uma necessidade científica. A mercadoria na medicina foi enfeitada com o discurso científico, pelo menos na consciência do médicos.
O movimento de humanização liderado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) enfoca o viés comportamental. Supõe que a luta pela humanização da medicina será superada pela humanização dos médicos, como se o problema fosse a desumanização pessoal dos médicos.
Dentro dessa crença, a estratégia do CFM é realizar seminários, debates, simpósios e palestras de convencimento, para que os médicos leiam os clássicos da literatura, abram-se para a poesia, a música, as artes plásticas, o cinema e o teatro. A pretensão do CFM é humanizar os médicos.
A medicina clássica era ciência e arte, as escolas de medicina encarregou-se de suprimir a arte.
O CFM entende essa arte como sendo literatura, música, poesia. Calma gente, essa arte é a sensibilidade da relação dos médicos com os pacientes. A arte era o lado místico, pessoal, sagrado, afetivo, era a transcendência da condição humana, com as suas crenças e medos.
A arte é a busca de alívio do sofrimento humano, onde a ciência não tem alcance.
A questão central da desumanização dos serviços médicos, isto é, a sua transformação em mercadoria, a troca do doente pela doença, do cuidado pelo procedimento são solenemente ignorados pelo projeto do CFM.
A medicina é humana quando cuida das pessoa, alivia os sofrimentos, acolhe os que necessitam. A medicina humana é a voltada para os pacientes. Simples assim...
A polêmica central da luta pela humanização é se a medicina de mercado pode ou não ser humanizada? Se pode, como iniciarmos as mudanças. Qual é papel das escolas médicas nessa cruzada? Quem são os aliados e os adversários dessa humanização? A luta é pela humanização da mercadoria ou pela mercantilização dos valores humanos?
No modelo atual as escolas médicas formam para o mercado, com a aparência de uma medicina centrada nas ciências. É possível que as escolas médicas, sobretudo as públicas, formem profissionais voltados para os pacientes, para as pessoas, sem abandonar o pilar científico?
Antônio Samarone.
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