A enxada ou a caneta ( Por Domingos Pascoal )

Redação, 20 de Março , 2020


Dia 02 de janeiro de 2020, foi dia do aniversário de 94 anos da dona Lídia Ximenes Melo, minha querida mãe. No dia 04 de janeiro, estive em Fortaleza para a comemoração desta data tão importante em sua vida. Vieram de Brasília a minha irmã Cilene e o neto Dr. Rodrigo. De Sobral veio Meu irmão Moesio e a sobrinha Luana, filha tio Ananias Melo e tia Maisa. Nos reunimos na casa do meu cunhado Paulo é minha irmão Ana Maria, presentes os filho deste lindo casal: Ana Paula, Paulo LUIZ, Ana Luiza e Ana Lidia. Foi uma festa linda.

Público, abaixo, um texto sobre esta magnifica mulher, minha mãe, com quem aprendi tudo que sei e o que sou.

 

A ENXADA OU A CANETA

“Meus filhos, não tem saída, são vocês quem devem escolher: é a enxada ou caneta”. Lídia Ximenes Melo

Claro que a frase não foi assim, tão bem construída, como a que está acima transcrita. Mas a passagem, bem como a cena onde ela foi verbalizada, ficou para sempre gravadas na minha alma: era noite escura no Cantodoamaistempo, lugarejo perdido do mundo distando alguns quilômetros da cidade de Groaíras, no interior do Ceará. A luz mortiça de uma lamparina pendurada num cambito enfiado na parede de barro iluminava aquela cena inesquecível. Todos nós, da família, (com exceção do meu pai que havia migrado para o sul), sentados no chão de terra batida ouvíamos minha mãe, contar histórias enquanto, diligentemente, pedalava uma máquina de costura.

Ela não era e nem é uma mulher letrada. Por isso creio que a elocução verbalizada deve ter sido mais ou menos assim: “meus fios é vocês que escolhe é a enxada ou a caneta. Ou seja, ou vocês aprendem a ler e a escrever, ou vocês estudam ou irão continuar com a profissão do seu pai, que é trabalhar na roça com enxada, foice ou machado na mão, sob o sol, a “russara” o mato e o calor. Vocês têm apenas estas duas saídas”. Na verdade, existia outra possibilidade: a de migrar para o sul, (naquele tempo e naquele lugar tudo era sul: Rio de Janeiro era sul, São Paulo era sul e, até Brasília, era sul). Porém, a minha mãe era muito apegada aos filhos e, na cabeça dela, esta era uma hipótese de que não gostava nem de pensar: um filho seu viajar pra longe? De jeito nenhum: “enquanto eu puder costurar, plantar e criar uns bichinhos, meus filhos ficam comigo, onde come um comem três”, ela dizia sempre; sequer cogitava a infeliz ideia de um filho seu sair do seu raio de cuidado, imagina viajar para longe dela…!

 

Todavia, para tristeza da minha mãe, naquela mesma década de sessenta não houve escapatória, todos tivemos que nos retirar dali inclusive ela, minha mãe, e as crianças menores. Meu pai já tinha ido, eu fui em 1968 para o Rio de Janeiro, minha irmã foi um pouco antes para São Paulo e, meu irmão mais novo do que eu seguiu-me em 69, acabou que todos tiveram que partir em retirada, fugindo da seca, da pobreza, da sede e da fome. Ela, minha mãe viajou para o Rio de Janeiro onde já estávamos eu e meu irmão e, de lá, foi para São Paulo, onde morava a minha irmã. Mas, lá também não ficou muito tempo, pois meu pai já morava em Brasília, e foi pra lá que ela seguiu meses depois. Na Capital Federal ficou até o ano de 2012 quando se mudou para Fortaleza, onde passou pouco tempo e já retornou a Brasília de novo e de lá não quer sair. Aquela frase, porém, nunca me saiu da cabeça: a caneta ou enxada. Na verdade eu detestava aquele trabalho e, fiquei a matutar: tenho que pensar na caneta, pois, mesmo muito jovem já era obrigado a capinar usando a tal da enxada e, não gostava, fazia por obrigação, não tinha outra saída, embora tenha tentado várias atividades, mesmo ainda muito pequeno, com dinheiro emprestado, experimentei comprar e vender galinhas, ovos e garrafas e, também, ajudar nas feiras o que eu não queria era a danada da enxada, da foice e nem do machado. Não tolerava os calos nas mãos, as coceiras pelo corpo e o calor do sol, a irritação e o suor. Não. Eu não queria continuar trabalhando no mato. Trabalhar no mato era e é ainda muito desconfortável, o contato com o mato irrita a pele o sol, o suor, a poeira e a "russara", são motivos para ninguém gostar, "russara" era como denominávamos a irritação, coceira e o desconforto provocados pelo contato do mato com o corpo. Era um tremendo mal estar. Decidi, assim, que iria escolher a caneta. Eu tinha nove anos, foi a melhor decisão que tomei em minha vida. Não tinha a menor ideia de onde isso iria me levar. Na verdade eu só tinha sido apresentado a uma caneta quando um parente meu veio do Rio de Janeiro e me mostrou uma, na verdade não cheguei nem a tocá-la, só a vi na mão dele, que logo colocou no bolso pra ninguém pegar. Porém, só em me ver livre daqueles suplícios provocados por aqueles instrumentos de tortura, bem como do contato com o mato, já seria muito bom. Acreditei que nada seria pior que um machado, uma foice ou uma enxada dentro daquele matagal horroroso.

Aquelas palavras operaram em mim uma convicção inabalável: não quero trabalhar no mato, pronto! Tenho que aprender a usar esta danada de caneta. Eu quero a caneta. Não quero mais a enxada... Essa resolução, acertadamente tomada, trouxe-me ao que sou hoje. Sinto-me realizado e me realizando a cada dia, graças àquela bendita frase verbalizada pela minha amada mãe e, naturalmente, ao meu esforço em torná-la real.

 

 


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