Memórias sem motivação (Por Mateus Melo)

Conto de terror

Mateus Melo, 17 de Julho , 2020 - Atualizado em 17 de Julho, 2020

Memórias sem motivação

Que sentimento leva um homem a decidir escrever suas memórias, de buscar lá no fundo de seu imaginário, onde as ideias estão todas interligadas em corrente paralela, onde o acontecido se mistura com os sonhos? O que nos leva a achar que essas cenas e situações devam ser guardadas, que elas devam merecer o registro escrito, que elas mereçam ser imortalizadas desdenhosamente na eternidade do papel?

Penso que nem meu nome, nem o que já fui, antes de ter de me refugiar tão solitariamente, devam ser mencionados ou muito menos lembrados. Ainda sem entender qual a motivação de escrever esta memória, a qual mudou toda minha vida, tentarei, com os poucos recursos literários de que disponho, ser o mais fiel e menos interventor possível. Peço ainda que não julguem minha saúde mental ou algo do gênero. Tudo que fazemos tem uma motivação. A escrita é a expressão da alma, então resolvi me almar. É melhor agora antes de que a Indesejada das gentes chegue, se dura ou caroável, não sei, mas é melhor antes de que ela chegue.

Devido à minha pouca competência literária, contarei da forma como as coisas foram sucedendo e como o espírito desta memória foi sendo formado. Há autores, que por sua perspicácia, por sua habilidade em dobrar as palavras e delas extrair o efeito que desejam, começam suas memórias pelo final, como o moribundo Brás Cubas. Seguirei a linha tradicional. A gênese de tudo. Vamos a ela.

Até o verão de 1985 eu considerava que era uma pessoa normal, com defeitos a cuidar e valores a manter. Nasci e cresci no mesmo lugar, uma propriedade de trinta hectares. Nada que fosse muito especial, a não ser pela fertilidade dos sentimentos que dali brotavam. Toda a juventude passei ao lado de meus pais no trabalho árduo do campo, do qual todo trabalhador rural se orgulha e eu também me orgulhava. Não tive irmãos, era solitário. A leitura fora minha melhor amiga e mais sincera companheira. Nos poucos anos em que frequentei a escola, conheci uma professora que, tocada por minha solidão, me disse que a leitura abre muitas portas e que libera muitos encarcerados das mais terríveis prisões, das quais a solidão era uma delas. Era uma existência que me machucava. Pensava muito nisso, pensava na facticidade de minha existência e de como tudo, ao meu redor, não se conectava e era vazio, assim como estas memórias.

Perdi meus pais ainda jovem num desses fatos sem explicação, tiveram suas eternidades adiantadas. Logo casei-me com Selene, uma jovem vizinha da propriedade. Selene ajudou, na minha solidão, muito mais que os livros, pois as viagens que ela proporcionava, mesmo sendo só pelas ruas de seu semblante, faziam-me sentir acompanhado e menos solitário. Com ela tive um filho, trabalhador e prestativo, Abel. Trabalhávamos eu e meu filho na terra, Selene estava sempre com um lar pronto para nos acolher após as longas horas de trabalho que passávamos todos os dias. Essas longas horas eram proveitosas porque estava sempre ao lado do meu filho. Era recompensador trabalharmos juntos.

Na época a que me refiro, a situação estava começando a ficar difícil para o pequeno produtor rural no país, muitos vizinhos já tinham vendido suas terras e ido para a cidade. Coisa que nem eu, nem meu filho queríamos, no entanto, era o sonho de Selene que saíssemos dali e fôssemos para a cidade. Longas tardes e noites perdemos discutindo sobre isso, eu parecia o Imperador Dom Pedro de Alcântara em seu “Dia do fico”, tamanha era a minha rispidez à ideia de sairmos da nossa propriedade. Com o tempo, o calor e a intensidade das nossas discussões aumentaram. Todo o prazer que sentia ao olhar seu rosto, agora já desprovido do belo e sublime que outrora me encantava, foi sendo transformado pelos piores pensamentos e divagações possíveis.

Todo homem possui um pêndulo que mantém o equilíbrio do homem interior, ou da alma, como o leitor queira, o meu começava a mostrar defeitos. Ela, ao ver que eu não iria ceder, começou a induzir meu filho ao mesmo erro. Para o azar dela, ele sempre foi muito apegado à terra e a mim. Não seria tão fácil convencê-lo. O ódio, palavra de somente quatro letras, mas que exerce um poder e uma força semântica tão forte como se possuísse um milhão de letras. Enquanto palavra, mesmo que forte, não pode fazer mal algum, o problema é quando ela passa da virtualidade da palavra à realidade, virando sentimento difícil de ser esquecido ou amainado. Por ódio, a humanidade enfrentou os seus piores momentos. E era esse o sentimento que começou a brotar no solo fértil de meus pensamentos. Falo aqui pensamentos ao invés de coração, porque entendo que o ódio não é um sentimento abstrato, como o amor, a felicidade ou qualquer outro facilmente aprendido na categoria de substantivos abstratos, ele causa mal ao seu portador e a quem ele se direciona, sendo possível sair da abstração para a realidade assim que ele é plantado e nutrido.

Comecei a guardar ódio desmedido por Selene, por suas malucas ideias de abandonar a terra, eu e nosso filho. Fiquei por um tempo pensando em como resolver, não havia solução, não via outra maneira. O pensamento era um só. O ódio, do qual reservei um longo período de descrição, tomava por completo meu ser, desregulava completamente o pêndulo que mantinha meu equilíbrio, que me mantinha racional, fazendo com que eu não pensasse mais racionalmente, o ódio havia se tornado REAL em mim. Pensei muito nas oportunidades de tirar a vida de Selene. Refleti sobre tudo, sobre a distância da propriedade mais próxima da nossa, com qual arma resolveria a questão, em que local a esconderia após resolver, qual desculpa daria pelo seu sumiço repentino... TUDO, tudo menos como convencer meu filho sobre isso. Mas até isso, eu consegui solução.

Um dia descobri o romance que existia entre meu filho, Abel e uma moça de sua escola, a qual morava na propriedade mais próxima da nossa fazenda. Claro que ele sentia amor pela fazenda, pelo trabalho comigo no campo, mas penso que o principal motivo era ela. Ao perguntar-lhe sobre, ele ficou bastante nervoso, suava e gaguejava. Disse a ele que não precisava se preocupar por eu saber disso, mas sim por Selene querer acabar com seu relacionamento, nos tirando dali e indo para a cidade, onde ele não veria mais a moça de seu primeiro amor. ÓDIO. Ele já ficou contrariado, pois concordava comigo.

Outro dia inventei que Selene havia descoberto seu romance e que não iria aceitar que mesmo que eu ficasse na fazenda ela iria levá-lo para cidade com ela, decidiria isso na justiça. Ao falar-lhe isso, o rosto dele rapidamente foi transfigurado, eu não reconheci meu filho naquele momento, pensei até em desistir de colocá-lo naquilo junto comigo. Mas ele começou a esbravejar, perguntando-me, quase espumando de raiva, o que eu pretendia fazer para ajudá-lo, para resolver a questão. Pensei muito se deveria ou não contar-lhe meus pensamentos e planos, não poderia adivinhar qual a reação dele ao saber que eu arquitetava matar sua mãe. Mas resolvi atiçá-lo ainda mais, antes de contá-lo meu verdadeiro objetivo. Falei-lhe que sua mãe havia comentado comigo acerca da moça, de comentários que ela havia ouvido com outros vizinhos, comentários pérfidos e indevidos a uma moça. Prefiro nem citá-los aqui, pois reuni várias características detestáveis para qualquer menina da época. Quando percebi que o ódio dele havia chegado ao clímax, decidi contar-lhe como resolver fácil e rapidamente o problema que sua mãe havia se tornado. Mesmo na maior das raivas, no maior fogo de ódio que poderia estar o remoendo naquele momento, o rapaz perguntou-me se essa era a única saída. Respondi que sim, expliquei-lhe meus planos. Demorei alguns dias e mais mentiras para convencê-lo.

Ele aceitou. Pedi a ele dois dias para arrumar todos os preparativos. Decidimos fazer da maneira mais indolor possível. Afinal, ainda a amávamos, mesmo contrariados, não queríamos seu mal. Você, leitor, deve estar se perguntando sobre meu cinismo ou até minha capacidade de me contradizer com tamanha frieza, mas pense se você não agiria da mesma maneira se alguém te quisesse tomar tudo que construiu e tudo que conhece, pense comigo por um instante. Eu pensei em enganá-la, dizer que eu e Abel decidimos ir para a cidade junto com ela. Fiz.

Foi numa terça-feira à noite, enquanto jantávamos. Falei sobre meu arrependimento pelas brigas e pela cabeçadurisse com que tratei a situação, pedi-lhe perdão e disse que iríamos junto com ela para a cidade definitivamente. Ela, de súbito, pulou da cadeira e me encheu de beijos e abraços, os mais doces até àquele dia, agradecendo-me por ter aceitado sua vontade. Não bebíamos com frequência, mas havia uma garrafa de vinho, já antiga, que abrimos e consegui fazer com ela bebesse além de seu limite, que era pouco devido a sua falta de experiência etílica.

Após ficar completamente bêbada, chamei meu filho e pedi que me ajudasse a levá-la para o nosso quarto, que ficava no andar de cima. Ele, no momento, relutou bastante, pensou até em fraquejar, mas lembrei-lhe da perda que ele teria caso ela continuasse viva e com seus ideais urbanos. Ele logo assentiu. Levamos ela para cima, a colocamos na cama, tivemos o cuidado de amarrá-la, pois sabia que se debateria bastante, não queria que a ânsia do instinto pela vida frustrasse nosso objetivo. Não consegui encontrar veneno, seria uma boa morte e indolor, como queria. Porém como estava bêbada e inconsciente achei que a faca no pescoço resolveria rapidamente a questão sem maiores problemas. Pedi que Abel cobrisse o rosto dela, afinal, não queria ficar com aquela imagem em minha cabeça, e muito possivelmente agora nesse rebuscar de memórias que estou executando ao escrever. Ele cobriu-a com uma fronha de travesseiro. Quando fiz a primeira incisão no pescoço dela, um jato feroz de sangue jorrou meu rosto, ela começou a se debater muito forte e bruscamente na cama, ainda bem que havíamos a amarrado.

Abel caiu em choro, começou, sentado, a me xingar de tudo que podia e vinha em sua mente, mas agora era tarde demais. Não poderia voltar atrás, terminei o serviço, passei mais duas vezes a faca, senti que seus últimos resquícios de vida corriam pelos meus dedos. Havia, finalmente, acabado tudo. Meu filho, agora inconformado com minha sandice e com ter aceitado fazer isso à sua mãe, veio com a maior fúria que podia contra mim, caímos em luta, eu ainda estava com a faca na mão e sem querer acabei desferindo um golpe certeiro em seu peito.

Caí, bati a cabeça e fiquei desacordado. Acordei no outro dia envolto a bastante sangue, que agora já estava seco. E só pensava que em um só dia, consegui acabar com minha esposa e com meu filho. Fiquei com a terra, mas perdi minha humanidade.


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