BRASILEIRO É LOUCO POR FUTEBOL

Carlos Braz, 10 de Outubro , 2020 - Atualizado em 11 de Outubro, 2020

 

 

 

BRASILEIRO É LOUCO POR FUTEBOL 

Por Carlos Braz

 

O brasileiro é apaixonado por futebol, e em nome desse sentimento são capazes de tudo.  Arriscam seus empregos, contraem dívidas, tatuam símbolos em seus corpos, começam e terminam casos de amor e mudam os destinos de suas vidas. Tamanho ardor, muitas vezes desperta instintos que vão de encontro à civilidade, atingindo um patamar imensurável e incompreensível para alguns. Até mesmo os poucos que não simpatizam pelo esporte são, em alguns momentos, envolvidos por ele, especialmente em disputas internacionais, momento em que, como dizia o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, “a seleção é a pátria de chuteiras”.

Somos milhões de treinadores especializados em técnicas e táticas, na criação de leis e vocabulário específico, aprovado e compreendido por todos.  O primeiro desses mandamentos diz que em time que está ganhando não se mexe. Muitos “professores” perderam seus cargos por não cumprirem essa lei. Mas o imponderável está sempre à espreita. E é isso que faz do futebol um esporte inigualável.

Domingo, faça chuva ou faça sol, no Brasil é dia de bola rolando. Seja nas grandes metrópoles ou nos rincões mais afastados da pátria verde e amarela o frenesi é o mesmo, e a idolatria clubista é prioridade.

O dia vinte e um de março de 1965 foi inesquecível para os amantes do futebol amador. Os dois clubes do Bairro Getúlio Vargas, Esporte Clube Tobias Barreto e o Corinthians Esporte Clube se enfrentariam no prélio decisivo do campeonato. Era a primeira vez que os tradicionais rivais se encontravam em uma final, porém, outros fatores excepcionais tornavam aquele jogo único: seria transmitido pelas ondas da PRJ-6, Rádio Difusora de Sergipe, sob ordens expressas do governador de então, interessado nos votos que a ação benemérita lhe renderia nas próximas eleições.

Além disso, detrás dos microfones estariam dois ícones do radiofonismo esportivo sergipano: Silva Lima na narração e José Eugenio de Jesus como comentarista. No fundo de gol, o primeiro e único repórter fanho do rádio mundial, o famoso Ton Ron-Ron. E para completar o brilho do espetáculo, o jogo seria apitado pelo lendário Roberto Bigodinho, o melhor árbitro da Federação Sergipana de Futebol, reconhecido ante sua conduta acima de qualquer suspeita.

Durante a semana que antecedeu o clássico não se falava em outra assunto e a empolgação tomou conta dos bares e cabarés da Rua do Bonfim e arredores, bem como de toda cidade, diante do ineditismo do evento. As apostas alcançavam valores expressivos e os craques envolvidos entraram em concentração com a promessa de uma gratificação arrecadada com os comerciantes da região. Nada de álcool nem excessos sexuais, já que muitos olheiros estariam presentes, o que significava a possibilidade de um contrato como profissional.

Enfim chegou o grande dia. O campo do Tobias não possuía alambrado nem tampouco arquibancada, ficando os torcedores aglomerados nas laterais, pertinho dos craques, sentindo seus cheiros e cantando as jogadas. As 15 horas em ponto iniciou-se a contenda. Sangue suor e lágrimas era o que se esperava dos vinte e dois guerreiros em campo.

Dezembro de 2019. Vagando em uma tarde de domingo pela praia de Atalaia, resolvo parar no Bar Amanda para degustar uma cerveja acompanhada com um caranguejo, fazendo hora para assistir um jogo na TV. Dez minutos depois adentra ao recinto um senhor elegantemente vestido, que chamava a atenção pelo bigode formidável assentado sobre os lábios finos. Um bigode para ninguém esquecer. Sim, era ele, o infalível Roberto Bigodinho, agora um Juiz de Direito respeitadíssimo pelo seu rigor no cumprimento das leis.

O amigo de longas datas também me viu e fomos ao encontro um do outro. Um abraço sincero nos envolveu e uma alegria natural tomou conta dos nossos corações, pois há muitos anos não nos víamos. Depois dos cumprimentos e perguntas de praxe, sentamos em uma mesa mais discreta e começamos a falar das trajetórias de nossas vidas, entabulando um colóquio, que, como não podia deixar de ser, acabou em futebol, e nos remeteu à distante decisão entre Tobias X Corinthians.

 Ali não estavam mais o ilustre advogado e o contabilista com nome estabelecido na praça, e sim dois entusiastas do “velho esporte bretão”.

Entre um gole e outro a conversa fluía facilmente. Perguntei-lhe pelo apito de prata que recebeu como homenagem dos esportistas, ante sua concordância em apitar, sem remuneração, o embate memorável. Ouvi como resposta um relato surpreendente, que perdurou por longos minutos.

- Caro amigo, aquele apito permanece em lugar especial no meu gabinete, como uma das melhores lembranças de um tempo que não volta mais. Mas quase o joguei nas águas do Rio Sergipe, na manhã do dia seguinte, após uma noite insone, carregada de reflexões sobre meu comportamento naquela longínqua tarde.

 Como assim?, Retruquei com genuína surpresa.

- Pois é amigo. Guardo em segredo verdades secretas que precisam ser do conhecimento de alguém. E ninguém melhor que você, testemunha viva daquela inimaginável jornada, para ser o depositário desta revelação. Naquela tarde fui salvo em minha dignidade pelo Sobrenatural de Almeida.

- Como todo mundo, eu também tinha minha preferência esportiva. O Tobias, foi fundado por um grande amigo do meu pai e angariava minha simpatia por mais um motivo: nominar um clube de futebol amador como Tobias Barreto, um dos maiores intelectuais da história de Sergipe chamava minha atenção, já que eu tinha uma inclinação natural pelo Direito, e vários amigos meus eram jogadores do clube. Minha ausência dos campos de pelada, motivada pela criação rígida e aristocrática dos meus pais, contribuíram para o desconhecimento sobre minhas simpatias no âmbito esportivo. Como árbitro profissional permaneci bem distante do esporte amador.

- Aceitei o convite para apitar aquele jogo em deferência ao carinho e respeito que sempre recebi dos meus contemporâneos. Contudo, movido pela paixão de um torcedor comum, entrei naquele em campo com o intuito de favorecer o Tobias. Seríamos campeões naquela tarde. Um pênalti duvidoso, uma bola na mão, um impedimento de difícil identificação, qualquer coisa que o favorecesse seria usada sutilmente, de modo que não manchasse minha reputação.

-O jogo começou com os adversários respeitando um ao outro. Toques de primeira faziam a pelota rolar ligeira no gramado.  Disputas duras mas sempre “na bola”. O Tobias me parecia mais objetivo no ataque, e sua defesa prevalecia ante os atacantes adversários. Em minha mente anjos e demónios travavam outro combate onde só haveria um vencedor e dois perdedores: eu e o clube prejudicado.

Passaram-se quarenta e cinco minutos que me pareceram infinitos. O hábito de ser honesto, os valores morais que sempre defendi intransigentemente desde cedo estavam em cheque. O ar parecia aprisionado em meus pulmões quando do cérebro vinha a ordem para errar, e essa confusão mental arrastava minha índole de um lado para o outro, ora para o charco da trapaça e da desonra, ora para o panteão dos justos compromissados com a verdade, obscurecendo meu juízo, deixando-me atordoado e cada vez mais aflito. Em meus turvos pensamentos tudo isso estava à vista das centenas de pessoas ali presente.

-Quase eu via a princesa nua, bradou Silva Lima o seu bordão, após um petardo perigoso do atacante corintiano que raspou a trave do nosso arqueiro.

-Foi um chute da porra, Lima. Assim arrematou Tom Rom Rom relatando o lance.

Acordei do meu torpor e encerrei o primeiro tempo, dirigindo-me à sala da delegacia ao lado do campo, improvisada como meu vestiário. Chupei algumas laranjas que estavam à disposição, tomei um copo de agua, e rezei, pedindo proteção e luz.

- O Segundo tempo começou com o Tobias nervoso, a gastar a bola sem pressa, como se a vitória viesse no momento em que desejasse, o que aumentava meu suplício interior. Anjos e capetas continuavam a embaralhar as regras.

Como prega uma das regras do futebol, “quem não faz leva”. Logo aos dez minutos do segundo tempo “a bola puniu’ e o Corinthians abriu o placar de forma inapelável, sem oportunidade para impugnação da jogada. Daí em diante o que se viu foi a mais bela exibição do futebol arte que encantou o mundo. Trinta e cinco minutos dignos de um Maracanã. Toque de bola refinado, fintas, lançamentos primorosos que atravessavam o campo de um lado a outro, milimetricamente, e gols, dois deles em cobrança de falta, sem defesa para o goleiro inimigo, que levaram o Esporte Clube Tobias Barreto a levantar o troféu tão sonhado pelos seus torcedores.

Não houve chance para que eu interviesse no placar final. Cumprimentado pelo meu desempenho, mais uma vez acima de qualquer crítica, recebi da maior autoridade presente no local, seu João Delegado, o apito de prata.

Voltamos ao presente, silenciosos por um breve minuto. O telefone toca e Roberto atende. O dever o chama. A autoridade jurídica aperta minha mão demoradamente, e embarca no carro preto que o esperava.

Imerso em meus pensamentos, tento compreender a construção desse enredo fantástico. Nele estiveram presentes, em um campo de várzea, todos os ingredientes que fazem do futebol o esporte com mais aficionados em todo o mundo. O que aconteceu aqui também acontece nos grandes estádios, com a mesma dimensão, o que torna o esporte universal.

O caráter de um homem bom, envolvido pelo redemoinho da paixão que supera os limites da racionalidade. Jogo jogado por atletas que deram tudo de si, superando em muito suas limitações técnicas, certamente com a interferência do Sobrenatural de Almeida. O bem, incorporado na alma e nos pés daqueles que lutaram honestamente do primeiro ao último minuto de jogo, desta vez saiu vencedor. O resultado premiou o melhor, justo, e a arbitragem não interferiu no placar. Eu e todos que se apinharam nas margens da quatro linhas naquela tarde de domingo, testemunhamos um espetáculo à altura dos grandes templos do futebol mundial.

O anoitecer já tomou conta da bela Atalaia, e também vou embora. Já na calçada, chuto uma latinha de cerveja que caprichosamente cai dentro de uma lata de Lixo. Gol de placa, imagino eu. Brasileiro é mesmo louco por futebol.

 

 


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