O CAMINHO DA FEIRA

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Peixoto, 02 de Janeiro , 2021 - Atualizado em 03 de Janeiro, 2021

O CAMINHO DA FEIRA

Às quatro da manhã, punha-se de pé, e rumava ao curral, para tirar o leite da única vaquinha mestiça. Dois litros e meio, o suficiente para abastecer a família. Duas crianças tinham a preferência. Se sobrasse, chegaria parte do leite para os maiores. A vaquinha, de pontas grandes, era apeada, cuidadosamente, para que não desse algum coice, embora fosse mansinha. Seu teneiro era franzino, de apenas três meses. Queria sugar todo o leite maternal, mas o dono da vaquinha o continha, de sorte a deixar o leitinho para a filharada.

As mutucas se aproximavam, mas eram enlevadas pela fumaça expessa do velho cachimbo. Cada baforada derrubava de quatro a cinco, tornando menos sofrida a árdua tarefa de segurar o caldeirão, a fim de que o velho pai fizesse o retiro. A retirada do leite era ritual para meia hora: laçar a mestiça, botar o filhote para apojar o úbere a ponto de se poder retirar o leite. Lavar cuidadosamente os peitos, com água fresca, para não infeccionar, nem adicionar impurezas ao leite. Um copo com mastruz pisado era trazido pela menina que sofria de puxar, para misturá-lo ao leite quentinho saído da teta da vaca. Era um santo remédio. Pá, casca!

Findo o longo ritual, era chegada a hora em que se malhavam mandiocas dormidas para pô-las no balaio e recompensar a mestiça, que já urrava faminta. Mais duas novilhas eram agraciadas com a mesma razão, pois teriam de engordar para a banca, ao fim do ano. Capim cortado, somente à tardinha. Pela manhã, o cardápio era constituído de mandioca malhada, rama de batata doce e maniva de aipim ou de mandioca, desde que arrancada há dois dias. Era o tempo suficiente para que o “veneno” da planta perdesse seu efeito e não “embebedasse” a criação.

Ao levar a ração ao pasto, o pangaré se dava conta de que também merecia um bom bocado, como recompensa pela tarefa de conduzir à feira seu proprietário. Fazia um barulho com as ventas, para indicar que também se encontrava ali e era digno de um desjejum. Também lhe chegava, no aió, um bom bocado de milho, o suficiente para lhe dar a energia de enfrentar o caminho da feira.

Já eram sete horas, quando o pangaré, selado, recebia, no lombo, seu dono com o filho, rumo à feira. Da porteira da estrada para a “rua” eram seis empoeirados quilômetros, mas divertidíssimos. O caminho da feira era a famosa trilha da fofoca, onde de tudo se ficava sabendo: a fia de seu Manué fugiu, com um bichinho do Congo; Zé de Zabé se largou da famia e arranjou rapariga no Pamandu; Filinta de Aliça tá nas últimas, o pade já veio ungir a miserável... roubaram a cabra de Marieta e a burra de Laurentino. De Anita, foi a porca! No Capunga houve desgraça: um pai buliu com a fia, e a bichinha pegou barriga... fim de mundo! Sá Barbina caiu do carro de boi e quebrou a bacia. Vai já para o Rumo. Que Deus a receba! Mió do que ficar em riba da cama por mais de ano e depois se ir mesmo!

Com esse converseiro todo a viagem encurtava. Em quarenta minutos já se estava a desmontar, no curral de Franco, ou de Tonho de Franco, uma espécie de estacionamento privado para carroças e animais. Pagava-se um conto para cada bicho ali permanecer. O pernoite saía por cinco contos, com direito a um meio feixe de capim.

Na feira, não se passava muito tempo, pois o dinheirinho era muito curto. Uma cabeça de porco, um taco de jabá, açúcar e café. Feijão, só se o da lavra acabasse. Uma lata de querosene, um rodo novo, meia libra de fumo de Arapiraca, pão da padaria de Zé Gordinho e um vidro de fortificante da farmácia de Oliveirinha. Pronto! Agora, era só tomar uma queimada, acender o cigarro de palha, jogar umas conversas fora, dar os recados aos parentes, receber notícias deles e arribar para casa.

O sol está escaldante, mas o chapéu de palha ajuda a amortecer. No caminho, várias paradas, para uma pinga e um dedo de prosa com os amigos e parentes. Um grupo de cavaleiros se formava, com os vinte integrantes. Conversas, fofocas novas e velhas, acertos de feitura de farinha, empreitadas para tirar lenha nos matos, plantar capim. A cada dez minutos de viagem, uma bodega sorria aos andantes, de sorte que a pinga corria solta. Os pangarés sabiam regressar direitinho, sem quaisquer problemas. A tarefa estava cumprida.

Indo ou voltando, o caminho da feira era uma festa. Mas era a volta que melhor expressava a alegria dos pais de família, pois vinham satisfeitos por terem conseguido comprar o necessário para a subsistência da família, naquela semana. Outra razão eram as boas doses de gargalhadas acrescidas de uma pinguinha, que se repetia, de quando em quando. Para uns, o único divertimento; para outros, apenas mais um. De qualquer sorte, era ocasião para a festa do encontro e da preservação da amizade que, entre os pobres da roça, ainda era sincera e autêntica.

Ao cabo da manhã, quando o sol estava a pino, alguns já estavam em casa, desarreando o cavalinho. O caminho da feira era o mais prazeroso ajuntamento do fim de semana, pois por ele se encontravam os amigos, sabia-se das novas e partilhava-se de uma boa cachaça regada a prosa e causos. Daqui a sete dias tudo se repetirá.


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