BRINQUEDO DE RODA

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Peixoto, 11 de Julho , 2021 - Atualizado em 11 de Julho, 2021

 BRINQUEDO DE RODA

 

A vida na roça é insana, exige sacrifícios atrozes, sem qualquer recompensa que valha a pena. O chão parece cada vez mais duro, a enxada é cega, o sol inclemente e o bamburral é de capoeira expessa e eivada de malícia e de jetirana, ervas daninhas que emperram ainda mais o trabalho: a primeira fere a mão e a segunda, amarra a enxada. trabalhar ali é eternamente penar, numa desproporcional purgação.

Só há duas alegrias, quando se trabalha nos bamburrais de capoeira grotesca e trabalhosa: a hora do almoço e a hora de arrear os serviços. São dois momentos distintos que recobram a alegria e despertam para a esperança de um outro modo de viver. Alguns se aventuraram para as bandas do Sul, mas para trabalhar igualmente em pesadas fainas, cujas pagas, por melhores que fossem, empatariam com o que se apura por estas bandas. Ainda mais, se é para ficar longe do grande amor, melhor ficar nos bamburrais e nas covas de inhame, ainda que a paga seja mais fraquinha. Em presença da amada, a vida reluz e cheira adocicada, ainda que amarga como fel.

Quem vive aqui está exposto a cobras, a caranguejeiras, a escorpiões, animais peçonhentos que não dão sinal de sua presença e acabam por surpreender. Ser roceiro, ainda mais pataqueiro, é sinônimo de morar com o perigo, num casamento letal. Por vezes, correm notícias de picadas de jararaca, de espinha de sapo, de mordida de cambranganza (escorpião), cama de sapo. Tudo é nocivo e dificulta o viver. Mas é preciso tocar o barco da vida, em meio a ondas revoltas, na esperança de um dia melhorar. Bamburrais, covas, farinhadas, pelagem de inhame são os únicos refrigérios que ainda possibilitam um quilo de fato, uma língua de boi, uma fuçura de boi ou de bode, com que se passa a semana, para o sustento dos muitos filhos que nasceram um após o outro.

Após essa pesada luta, de segunda a sexta-feira, ou até ao sábado, uma pausa para o repouso e para o divertimento: o brinquedo de roda, na casa de Seu Jerome, homem afamado pelas pilhérias e pelo tino de tirar versos de improviso, que sabia fazer do brinquedo de rodas um divertimento atrativo. Quando não era na casa dele, por motivos de menino novo, o adjunto se dava na casa de seu Lourenço, ali próximo, com mais alegria ainda. Na casa de Lourenço, havia muita pinga e muitas moças dispostas a pisar barro. Quem ia, lavava a égua!

Quando o sol desaparecia, as pessoas começavam a chegar e se iam ajuntando, com conversas sobre o preço da carne, que subiu; o da farinha, que desceu; a casimira que não dá mais para se comprar o metro com dois dias de serviço... o pobre só tinha alegria, nas casas de Seu Lourenço e de Seu Jerome, onde, aos sábados, vozes agudas e graves rasgavam o silêncio da noite, em estreita sintonia com o batido das mãos e dos pés, e davam conta de levar espontaneidade, alegria e, por vezes, até um namoro novo, nas cercanias do Cajueiro. Vinha gente do Pamandu, do Congo, das Candeias, da Igreja Velha, do Corisco, da Terra Vermelha... era festa animada.

Enquanto as moças de família se faziam presentes, o cantador – em geral Seu Jerome Peixoto ou Arbaninho - encarregava-se de puxar versos decentes, respeitosos, embora engraçados: “Menina, diga a teu pai (refrão: quero ver quebrar!), que não coma camarão. Ele está pra ser meu sogro, e você meu coração”. Mas, após a senhoras casadas, com suas filhas moças, presas secretas de muitos mancebos dançadores do coco ou do samba de roda, saírem, os versos tomavam um tom mais picante e esquentavam a brincadeira, de sorte que varava a madrugada. O dia seguinte era domingo, que permitia uma madorna a mais, sem o imperativo dever de se levantar antes do sol.

Trabalhava-se a semana inteira sob os comentários sobre os versos mais picantes, os mais engraçados, sobre o pó de arroz das moças, as roupas, as águas de cheiro que trouxeram da vila. O Samba de Roda ou de coco fazia com que a aspereza da labuta com a terra fosse amenizada. As horas passavam depressa, e até se repetiam alguns versos: - Sicupira é pau linheiro/; bananeira é pau sem nó. Pai e mãe é coisa boa./ Namorá inda é mió”.

Essas coisas bucólicas e líricas enfiavam goela abaixo a motivação para os mais ásperos trabalhos no campo, desde que, no sábado seguinte, houvesse mais um samba de roda. o Brinquedo era alento para a alma, bálsamo que aliviava a dor, refazia as energias e inspirava as mentes para o enfrentamento da tormenta semanal.

Seu Jerome foi o maior puxador de versos, cantador de Brinquedo de Roda que o Cajueiro pariu. Embora sua voz fosse meio rouca, sua mente era fértil e seu senso de humor desmedido, sem qualquer preocupação com a decência do verso. O que valia mesmo era ser engraçado, a ponto de arrancar risos e de quem se fizesse presente. E era isso que atraia tantas pessoas aos folguedos em seu terreiro sabático.

As brincadeiras semanais cessaram, os cantadores morreram, os costumes se transformaram, mas a luta na roça – já melhorada – continua a esfolar braços e pernas, a escaldar miolos sob o sol causticante, numa guerra travada entre o existir e o morrer, entre os sonhos e as ciladas da realidade. O que vale é saber que, neste torrão, a alegria já imperou soberana, a cada sábado à noite. Hoje, há rodas dadas a outras serventias, destituídas de qualquer folguedo, diversão ou arte. A vida vai deixando marcas novas, talvez mais atrozes do que as da roça de outrora.


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