Sempre que possível (por Carlos Pinna Junior)

por Carlos Pinna Junior

Carlos Pinna Junior, 21 de Setembro , 2021 - Atualizado em 21 de Setembro, 2021

À primeira vista, não deixa de ser intrigante o fato de alguns enunciados normativos apresentarem em seus conteúdos uma expressão característica, geralmente inserida como uma espécie de atenuante de uma ordem, assim redigida: “sempre que possível...”. Tome-se como exemplo inicial o art. 7º, IV, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ao alertar que o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: “para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.”

A dificuldade de compreender a utilidade da expressão advém do fato de que, academicamente, colhemos da tradicional teoria da norma jurídica a noção de sua imperatividade. Desse modo, o “sempre que possível”, ao aparentar uma concessão, pareceria fragilizar o comando normativo, atribuindo ao destinatário da norma uma certa liberdade de atuação.

O Código de Processo Civil é um dos diplomas que demonstram a frequência desta expressão: ela está estampada em 16 (dezesseis) oportunidades. Nele, há situações em que, de fato, o “sempre que possível” é um critério quase objetivo, uma técnica redacional elogiável, não deixando qualquer margem de escolha ao destinatário, como no art. 3º, §2º: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”. Claramente, a expressão, aqui, induz à ideia de que para haver conciliação ou transação o processo deve ser de natureza que assim o permita, além de remeter à invocação de exaurimento de todas as tentativas conciliatórias, soando como um estímulo que, contudo, não poderia jamais ser impositivo.

Já o Código de Processo Penal, ao utilizar a expressão em seu art. 405, §1º, demonstra uma vontade transformada em recomendação, posto que condicionada à capacidade tecnológica da circunstância: “Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações.”

O Código Civil, no art. 1.102, III, também se vale da expressão ao impor os deveres do liquidante da sociedade: “proceder, nos quinze dias seguintes ao da sua investidura e com a assistência, sempre que possível, dos administradores, à elaboração do inventário e do balanço geral do ativo e do passivo”.

A nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) igualmente utiliza a expressão no artigo 40, ao determinar que o planejamento das compras deverá observar e o consumo e utilização prováveis, “cuja estimativa será obtida, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas”.

Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/93) em seu artigo 50, §11, projeta ainda mais discricionariedade ao destinatário da norma ao acrescentar, ao lado do “sempre que possível”, a condição de um ato “recomendável”, assim enunciando: “Enquanto não localizada pessoa ou casal interessado em sua adoção, a criança ou o adolescente, sempre que possível e recomendável, será colocado sob guarda de família cadastrada em programa de acolhimento familiar.”

Diante destes e de tantos outros exemplos, o fato é que a maturidade jurídica leva a compreender a razão de os legisladores valerem-se desta expressão, certamente pautados no esforço de conjugar o estímulo a determinadas condutas com o reconhecimento da eventual dificuldade de cumpri-las. Trata-se de um gesto legislativo de conformação e de senso de realidade, renunciando à possibilidade de imposição rígida de uma vontade em favor do realismo.

Por todas estas características, este modelo normativo condicionante – representado pelo “sempre que possível” e suas variantes – provoca reflexões sobre o seu enquadramento na teoria da norma jurídica, instigando uma análise aprofundada sobre a posição de grandes expoentes sobre o tema, a exemplo de Norberto Bobbio, Hans Kelsen e tantos outros.

A expressão é mesmo instigante porque remete inevitavelmente a alguns questionamentos: como comprovar, em uma situação concreta, que, de fato, não foi realmente “possível” cumprir o comando da norma (que impunha uma conduta “sempre que possível”)? Os mais desconfiados questionarão: e se realmente era “possível” mas o destinatário, por pura predileção ou comodismo, não quis realizar a conduta, justificando, para tanto, que “não foi possível”? Como controlar essas situações?

Em verdade, a razoabilidade e a própria boa-fé são os elementos a guiar a conduta dos destinatários deste tipo de norma, encerrando esse falso dilema. Com eles, restará perfeita a noção ponderada e conformadora do direito, como ensinada por Recaséns-Siches em lição que bem se aplica a este e tantos outros temas: a lógica do direito é a lógica do razoável. Sempre que possível, evidentemente.


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