Memórias afetivas. (por Antonio Samarone)

Redação, 12 de Agosto , 2023


 

Mamãe era mestiça de índio com branco português. O seu bisavô paterno, João José de Oliveira, chegou de Portugal, em 1852.

Montou uma tenda de ferreiro em Matapoã, Itabaiana, e se casou com uma índia, de Itaporanga.

Mamãe, sua bisneta, era uma camponesa das Flechas, que não completou o primário. Disposta, dona do seu nariz. Não aceitava desaforos. Católica, filha de Maria, mas morreu evangélica. Eu aprendi a igualdade e o respeito aos mais velhos, em casa.

Mamãe tinha explicações para quase tudo, não aceitava verdades prontas. Sempre polemizava, com argumentos consistentes! Por opção, teve 16 filhos (sobreviveram 10). Ela defendia: “gente pobre deve ter muitos filhos, pois quando um não presta, outro presta.” Por sorte, todos prestaram.

Prestar é não abandonar os pais na velhice ou na doença.

Nos educou pelo exemplo, sem violência. Quando saímos dos trilhos, ela repetia. “Você está errado!” E nos ensinava o certo. “Se você não seguir, depois o mundo lhe ensina, com uma diferença: o mundo ensina pelo sofrimento, na pancada e Eu ensino com carinho.”

A educação camponesa era rígida e a verdade inflexível. O certo era certo e o errado era errado. Não se dizia NÃO a pai e mãe. E menino não tinha vontades.

Papai era mestiço de holandês com negros. Um moreno de olhos verdes, da cepa de Dona Genoveva do Matebe. Analfabeto, só assinava o nome para votar. Trabalhador rural sem-terra, pataqueiro e negociante de feira, revendia redes de dormir e roupa feita.

A partir dos 10 anos, eu o acompanhava nas feiras de Laranjeiras e Malhador. Segundo mamãe, para ajudá-lo.

Eu presenciei em Laranjeiras: um cortador de cana da Usina Pinheiro comprou uma rede. Mandou embrulhar e, depois, simulou que tinha esquecido o dinheiro em casa. E eu prestando atenção. Papai, crédulo, disse: sem problema, leve a rede e depois você traz o dinheiro.

Quando o homem saiu, eu reagi: Papai, ele não volta. O senhor não deveria ter deixado ele levar a rede. Quando ele retornasse com o dinheiro, levaria o produto.

Papai retrucou, deixe de ser besta, daqui a pouco ele traz o dinheiro. E o dia foi passando, e nada do cortador de cana.

No final da tarde, eu cantei vitória: está vendo, papai, eu não disse que o homem não voltaria. Papai não se avexou: “meu filho, aprenda: uma pessoa que precisa me enganar, está pior do que eu, precisando mais. Portanto, está perdoado.”

O meu pai tinha o espírito do cristianismo primitivo. O problema é que mundo girava noutra direção. Papai penou, para criar uma família grande, com muita dignidade e pouco dinheiro.

De papai, eu herdei o bom humor e a insônia. De mamãe, não ser subalterno, nem puxa-saco.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)


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