Número de pessoas em situação análoga à escravidão foi o maior em 15 anos

Redação, 21 de Março , 2024

Dados recentes divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revelam uma chaga que ainda permanece aberta na realidade social no Brasil: o trabalho análogo à escravidão. Segundo o órgão, 3.190 pessoas nesta condição foram resgatadas durante 598 operações de fiscalização ao longo do ano passado em todo o país. Este foi o maior número dos últimos 15 anos, superando o total de 3.765 resgates em 2009. Desse total, a maior parte foi encontrada em estados da região Sudeste, que tiveram 225 estabelecimentos fiscalizados e 1.153 trabalhadores resgatados. 

“A questão do trabalho escravo é, antes de tudo, uma questão comercial. Por mais terrível que pareça, as pessoas exploram outras nessa condição porque tal prática maximiza o lucro. É um processo de desumanização do trabalho, já que o labor humano, para quem reduz outra pessoa à condição de escravo, é apenas mais um fator de produção que, como os demais, deve ser sempre reduzido, o mais próximo de zero”, define o professor Ricardo das Mercês Carneiro, do curso de Graduação em Direito e da Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD) da Universidade Tiradentes (Unit). 

A maior parte destes resgates aconteceram em propriedades rurais, principalmente em plantações de café e cana-de-açúcar. Muitos dos resgatados nesta condição são de famílias em situação de extrema pobreza e de comunidades ou regiões mais distantes, que acabam atraídas por promessas de grandes oportunidades de trabalho, mas acabam submetidas a trabalhos com condições degradantes, longas jornadas e praticamente nenhuma remuneração ou direito. Em muitos casos, as vítimas acabam devendo dinheiro às próprias pessoas que os contrataram. 

“É aquilo que a lei chama de servidão por dívida. O trabalhador trabalha para quitar uma dívida impagável, criada a partir dos artifícios da política de armazém, segundo a qual todos os produtos que a empresa vende ao obreiro são superfaturados e ele não tem outra opção de compra (até em razão dos locais distantes em que os trabalhos são realizados, especialmente no setor rural)”, detalha Carneiro. 

Ha ainda uma situação que têm chamado muita atenção é a do trabalho análogo à escravidão em ambientes domésticos, nos quais existem mulheres que moram e trabalham em jornadas interminaveis, sem receber nenhum salário ou direito. Um dos casos de maior repercussão aconteceu em maio de 2022, no Rio de Janeiro, onde uma senhora idosa de 84 anos foi descoberta na casa de uma família, para a qual trabalhava desde 1950, quando tinha 12 anos. Dois membros da família responsável foram acusados por quatro crimes relacionados a trabalho escravo e apropriação de recursos, e denunciados à Justiça pelo Ministério Público Federal (MPF). 

De acordo com o professor, os números da chamada “escravidão doméstica” são crescentes, mas ainda são bem distantes da real situação.“O ambiente doméstico é aquele em que a notícia da ilicitude chega com mais dificuldade, visto que, embora os dados estejam crescendo, sua publicidade ainda é muito aquém da realidade, porque algumas dessas pessoas exploradas desenvolvem sentimento de gratidão pela oportunidade de ter trabalho. Trabalham em troca de mínimas condições para sobrevivência, mas, em muitos casos, acreditam que “fazem parte da família” do explorador e, por isso, não denunciam”, detalha Ricardo, citando ainda a dificuldade de acesso da fiscalização às residências sem denúncia formal, em razão do princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio. 

Orçamento e efetivo

Outro dado divulgado pelo MTE chamou atenção: o recorde nos dados de fiscalizações e resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão foi obtido mesmo com o menor número de auditores fiscais do trabalho desde a criação da carreira, em 1994: são menos de 2 mil servidores da ativa no cargo. De acordo com o órgão, o governo conseguiu aumentar o número de resgates, a partir da própria atuação do ministério e da parceria com outros órgãos, como o MPF, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Defensoria Pública da União (DPU) e as polícias Federal e Rodoviária Federal (PRF).

Ricardo acredita que o aumento nos casos é fruto do retorno da política de erradicação Para ele, as fiscalizações nunca deixaram de existir, mas deixaram de ser prioridade orçamentária, durante um determinado período. “Uma ação fiscal desse tipo envolve muitos sujeitos, toda uma estrutura que implica incremento orçamentário. Quando não é a prioridade de quem decide sobre orçamento, natural que os dados pareçam reduzidos. A retomada, nesse sentido, gera um salto que é mais aparente do que real”, avalia.

O Código Penal prevê os crimes de “redução à condição análoga à de escravo” (artigo 149) e de “aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional” (artigo 207), com penas máximas que podem chegar respectivamente a oito e quatro anos de prisão. O professor da Unit defende um aumento das punições financeiras para empresas e pessoas que praticam a exploração pelo trabalho análogo à escravidão, além de uma reação mais contundente da sociedade civil. 

“Primeiramente, deixando de comprar qualquer produto ou marca que direta ou indiretamente esteja vinculado ao crime. A outra forma deve se dar através de pressão (positiva) junto aos seus deputados e senadores para que sejam enrijecidas as penalidades a serem impostas a quem explora o trabalho humano dessa forma, já que a exploração se dá, em geral, com fins de maximização do lucro”, propõe ele, citando medidas como a expropriação de imóveis urbanos ou rurais em que for constatado esse tipo de exploração, que está prevista na Constituição, mas ainda não tem lei que a regulamente. “Não tenho dúvida que a situação ainda é muito grave no Brasil e enquanto a punição não for centrada no ‘bolso’ de quem explora o ser humano, há uma tendência de permanecermos com esta chaga”, conclui Carneiro.  


Asscom Unit


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