Casos de abuso sexual de crianças e adolescentes crescem em Sergipe

No Dia Nacional do Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, não há muito o que se comemorar

Marielle Rocha, 18 de Maio , 2022 - Atualizado em 18 de Maio, 2022

O século é XXI (21), o ano 2022, mas parece que falar sobre abuso sexual de crianças e adolescentes ainda é receoso, inclusive por boa parte da mídia que muitas vezes “engaveta o tema e quando retira da gaveta” faz uma cobertura com ausência de crítica, de reflexão, de diversidade de pontos de vista, deixando a cobertura a desejar.

Hoje, dia 18 de maio, é o Dia Nacional do Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, mas não há muito o que se comemorar, visto que os casos no Brasil e em Sergipe, têm aumentado cada vez mais.

De acordo com o Artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considera-se criança, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos incompletos. A violência sexual e a exploração sexual contra crianças e adolescentes de 0 a 17 anos existe e os números de casos são alarmantes, tanto quando olhamos para o cenário nacional, quanto quando olhamos para o cenário regional.

Registros da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos mostram que as denúncias de violência sexual são em sua maioria, contra crianças. Até o dia 13 de maio deste ano, foram registradas 53.854 denúncias de violência infanto-juvenil no Brasil, através do Disque-Denúncia (181), e a maioria das vítimas são crianças de 7 a 9 anos. Conforme a tabela abaixo:

Dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/SE) mostram que em Sergipe, no ano de 2020, foi registrado o número de 480 crianças e adolescentes de 0 a 17 anos vítimas de estupro. No ano passado, esse número subiu para 578 e neste ano, até o dia 26 de abril já temos 131 casos. Infelizmente, talvez esse número possa ser ainda maior se somado com os casos silenciados e que ainda não foram denunciados ou comprovados.

Ainda conforme esses dados, quando analisamos as oito regiões de Sergipe, a maioria dos casos estão concentrados na grande Aracaju, especificamente nos municípios de São Cristóvão, Barra dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro, Itaporanga D’Ajuda e na capital sergipana, sendo nela os números mais altos. No sul sergipano, Estância, Umbaúba e Itabaianinha são os municípios com mais casos.

No centro-sul, Lagarto, Simão Dias e Tobias Barreto. No leste, Capela, Carmópolis e Santa Luzia do Itanhy. Na região do baixo São Francisco, Japoatã, Neópolis e Propriá. No alto sertão sergipano, Canindé de São Francisco, Nossa Senhora da Glória e Poço Redondo. No médio sertão sergipano, Aquidabã, Graccho Cardoso e Nossa Senhora das Dores. E no agreste, Itabaiana, Campo do Brito, Areia Branca e Frei Paulo.

Como podemos observar no gráfico acima, em Itabaiana, tivemos 23 casos em 2020, 17 casos em 2021 e 8 casos até março deste ano. A Delegada Jéssica Garcia do Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis de Itabaiana (DAGV), disse que é preciso que os pais, professores e pessoas próximas conversem e orientem crianças e adolescentes sobre esse tema, e principalmente observem se há alguma mudança no comportamento delas. Ela explica o procedimento que deve ser feito quando a criança ou adolescente conta que passou ou está passando por esse tipo de violência:

“O responsável deve procurar a Delegacia, no caso de Itabaiana, a DAGV, no caso de outros municípios, as delegacias municipais, a fim de que sejam tomadas medidas cabíveis o mais rápido possível, porque vai depender de cada fato retratado para que a gente tome as medidas certas. As medidas que em regra a gente vai tomar a depender do caso é solicitar o IML para fazer perícia, é solicitar acompanhamento do CREAS, do Conselho Tutelar, para que essa criança possa ter um atendimento psicológico e a delegacia vai fazer a parte investigativa e vai dar continuidade ao procedimento,” concluiu a Delegada.

Delegada Jéssica Garcia. Foto: Arquivo Pessoal

 

Em Sergipe, a Maternidade Nossa Senhora de Lurdes (MNSL), em Aracaju é referência estadual no acolhimento às vítimas de estupro e violência sexual.  O Serviço de Atendimento às vítimas funciona 24 horas, de domingo a domingo. O local conta com uma equipe multiprofissional composta por médicos, enfermeiros, psicólogos, psiquiatras, auxiliares de enfermagem e assistentes sociais, que oferecem atendimento continuado por seis meses.

A Assistente Social da MNSL, Ingrid Lima, explicou como é feito o acolhimento a essas vítimas. “No caso de ter ocorrido o contato físico, a gente procura saber se ocorreu em até 72hs ou mais, porque nessas 72hs que ocorreu a violência, é necessário aplicar medicamentos antivirais para que se evite doenças sexualmente transmissíveis nessas vítimas, e também é administrado medicamento para evitar uma gravidez. A vítima é acompanhada via ambulatório, de 6 meses a 1 ano pela equipe multiprofissional. A gente também conta com o laboratório e a farmácia da maternidade para fazer a realização de exames”, explicou.

Orienta-se que as vítimas procurem o atendimento de emergência em até 72 horas desde o crime, para prevenção de infecções e de DST, além do uso da pílula do dia seguinte, da coleta de vestígios e da realização dos exames de corpo delito.

Em Itabaiana, além do DAGV, o município também possui um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) que presta atendimento à crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. A coordenadora do CREAS, Givaneide Vieira, contou como funciona esse atendimento:

“Nós trabalhamos com a acolhida, a escuta qualificada individual voltada para a identificação das necessidades dos indivíduos e da família. Também encaminhamos para a rede assistencial, onde o atendimento psicossocial é direcionado a um momento da escuta principalmente da família da criança que foi violentada e são realizados os devidos encaminhamentos para que a família e a vítima se sintam acolhidas, protegidas”, falou.

Givaneide Vieira. Foto: Arquivo Pessoal

 

Ainda de acordo com Givaneide, a maioria das crianças que chegam até o CREAS, não possui documentação, muitas vezes nem possuem a identificação no registro civil, e no CREAS eles também fazem esse encaminhamento para que a criança/adolescente possam se tornar cidadãos. Ela ainda alerta aos pais que tenham um olhar mais crítico com aqueles que estão mais próximos, e tenham um cuidado mais relevante com as crianças para que elas possam ser resguardadas do seu período de infância e adolescência.

O município itabaianense também possui um Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente que é composto por membros do Poder Executivo (50%) e por membros da Sociedade Civil (50%). O Presidente do CMDCA, Wilmarques Santos, disse que o CMDAC de Itabaiana é um órgão normatizador, fiscalizador, formulador e controlador. O Conselho formula e delibera sobre a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente em todas as questões que dizem respeito ao população infanto-juvenil do município. Wilmarques falou como é o procedimento de acolhimento às crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, no município:

"Os casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes têm como porta de entrada o Conselho Tutelar que é o órgão encarregado pelo ECA de zelar pelos direitos da criança e do adolescente, lá é feito o atendimento e acompanhamento dos casos e é onde são requisitados os serviços públicos necessários e os encaminhamentos para garantir o atendimento digno e garantir que as vítimas recebam toda a assistência necessária do Poder Público. Posteriormente as vítimas são encaminhadas ao CREAS que faz o atendimento e acompanhamento social, onde também é feito o encaminhamento para o serviço de saúde onde receberão o atendimento psicológico."

Wilmarques Santos. Foto: Arquivo Pessoal.

 

Ainda segundo Wilmarques, durante o mês de maio acontecem ações educativas sobre a Campanha Maio Laranja com ênfase no Faça Bonito, paralelamente a isso acontecem atividades nos Centros de Referências da Assistência Social (CRAS), no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, onde são realizadas atividades temáticas sobre o tema central da Campanha. Nas Unidades de Ensino também são realizadas atividades de sensibilização e prevenção. O Presidente do CMDCA, ainda disse que nesta quarta-feira, dia 18, haverá uma distribuição de material informativo e uma mobilização na feira livre do município.

E POR QUE 18 DE MAIO?

Essa data foi instituída no Brasil em 2000 pelo projeto de lei 9970/00 e posteriormente veio o decreto nº 10.701, de 17 de maio de 2021, onde se institui o Programa Nacional de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes. 

A escolha se deve ao assassinato de Araceli Cabrera Sanchez Crespo. A menina de oito anos foi drogada, torturada, estuprada e morta por jovens de classe média alta, entre os dias 18 e 24 de maio de 1973 em Vitória, capital de Espírito Santo. Os principais suspeitos do caso foram absolvidos e a história da morte de Araceli permanece um mistério até hoje. O crime emblemático fez o Congresso Nacional instituir o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no dia 18 de maio.

No mesmo ano, em 11 de setembro de 1973, Ana Lídia Braga, uma garotinha de 7 anos também foi brutalmente violentada e assassinada em Brasília. A presença de dois nomes graúdos nas investigações teria sido um empecilho para a polícia por diversos motivos, sendo a ditadura militar o maior deles. O rapazes Rezendinho, filho de um senador vice-líder da Arena no Senado, e o Buzaidinho, filho do ministro Alfredo Buzaid, negaram o crime e o caso acabou sendo engolido ao longo das décadas mesmo diante de algumas provas coletadas pela perícia no local do crime.

Araceli à esquerda e Ana Lídia à direita. Foto: Reprodução

 

Hoje, não vivemos em uma ditadura como em 1973, mas assim como Araceli e Ana Lídia, muitas crianças continuam sendo vítimas desse tipo de violência e têm suas vozes silenciadas. Algumas depois de passar pelo terrível crime de violência física e sexual acabam sendo mortas e muitos crimes como estes, continuam impunes no Brasil.

Recentemente tivemos dois casos que chocaram o país, mas pouco foi repercutido. Um dos casos, foi o de Júlia dos Anjos, uma adolescente de 12 anos que foi brutalmente estuprada e assassinada pelo padrasto, em João Pessoa, na Paraíba. O seu corpo foi desovado dentro de um poço e encontrado seis dias depois em estado avançado de decomposição.

Uma semana depois, no dia 14 de abril, uma menina de 11 anos, Luna Nathieli, foi estuprada também pelo padrasto e espancada até a morte pela própria mãe, em Timbó, no Espírito Santo. Conforme o atestado de óbito, a menina sofreu politraumatismo e o laudo apontou diversas lesões internas e externas no crânio, pulmões, baço, intestino e partes íntimas. O casal foi preso preventivamente.

Júlia à esquerda e Luna à direita. Fotos: Reprodução

 

Muito provavelmente, Júlia e Luna já estavam passando por algum tipo de violência antes de serem assassinadas. E muito provavelmente, as meninas já haviam apresentado alguma mudança de comportamento, já haviam dado algum sinal de algo estava errado, mas foram silenciadas. Não se pode esperar que outros crimes bárbaros como estes aconteçam para denunciar os agressores, é necessário prestar atenção nos sinais que muitas vezes acabam passando despercebidos.

POR QUE GERALMENTE AS CRIANÇAS NÃO CONTAM QUANDO ESTÃO SENDO ABUSADAS?

Muitas vezes as crianças não contam para os cuidadores que passaram por aquela situação e às vezes contam e são desconsideradas, por não acreditarem que aquilo realmente aconteceu. O Psicólogo Ronoaldo Machado fala sobre um dos principais motivos das crianças vítimas não contarem:

“Um dos motivos principais é porque as crianças não têm repertório sexual e até cognitivo para entender exatamente o que é uma experiência de abuso, então é muito comum uma criança só entender que foi abusada de fato quando ela vai construir repertório sexual lá na adolescência e ai ela entende e tem subsídio para interpretar o que foi que aconteceu com ela no passado. Muitas vezes ela não fala porque ela nem sabe discriminar muito bem o que de fato foi que aconteceu com ela e o quanto aquilo, que por mais que tenha sido muito desconfortável representa algo tão nefasto como o abuso,” explica.

Ainda de acordo com o Psicólogo, quando a criança sente vontade de falar ela sente medo do impacto que pode ter no seu lar, e às vezes tem a fantasia de que será abandonada, e mesmo em casos em que o agressor não faça ameaças, existe uma confusão tão grande na mente dessa criança e vários medos e angústias que acabam impedindo que ela conte para alguém.

“Muitas vezes a criança até chega a contar dentro do que ela consegue dizer, mas ela é desacreditada, e o motivo por ser desacreditada são vários, às vezes as pessoas próximas preferem não acreditar naquela informação e manter por exemplo as coisas como são numa família, no caso de uma mãe por exemplo que recebe essa informação de uma filha, de um filho que foi abusado pelo pai, ela vai acreditar naquilo e sentir que falhou como mãe, como esposa, e correr o risco de perder o que ela tem da família ou ela vai em frente e vai correr o risco de alguma forma ver tudo desmoronando, as pessoas elas têm muito medo quando ouvem sobre isso de ir em frente e destruir a família, como se a família já não estivesse destruída pela própria situação do abuso,” disse Ronoaldo.

Ronoaldo Machado. Foto: Arquivo Pessoal.

 

Em relação aos traumas que uma criança ou um adolescente pode desenvolver quando acaba sendo vítima de uma situação como essa, Ronoaldo detalha: “Eles são inúmeros, não existe um desfecho específico, mas os desfechos eles aparecem e geralmente aparecem como sintomas e transtornos, depressão, ansiedade, transtornos psicóticos, e impactam muito a vítima, a qualidade de vida, a capacidade de se relacionar com os outros, de se relacionar consigo mesmo, e é uma experiencia devastadora do ponto de vista psíquico. Muitas vezes o abuso acaba se tornando um trauma duplo, primeiro, o trauma inicial, do abuso e quando a criança fala sobre isso e as pessoas não acreditam é o segundo trauma, porque é o trauma da pessoa com quem ‘eu poderia confiar pra me proteger, não está fazendo, não está sendo negligente com algo destruidor que está acontecendo comigo’.”

CAMPANHA MAIO LARANJA

A Campanha Maio Laranja é uma iniciativa do Governo Federal, através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Essa campanha reforça ações de combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes e conscientização para toda a população, enfatizando a importância de se atentar a situações de abuso e exploração, e principalmente a denunciar essas situações.

A cartilha deste ano com informações sobre o tema e com abordagens sobre casos, pode ser baixada aqui.

 

FIQUE ATENTO E EDUQUE SUA CRIANÇA SOBRE O TEMA

De acordo com a Delegada Jéssica Garcia, normalmente os autores dessa violência são pessoas do vínculo familiar, e os responsáveis devem estranhar pessoas que começam a presentear demais as crianças. E é importante também saber quem são as companhias do seu filho.

“Ouçam suas crianças, prestem atenção nessas crianças e nesses adolescentes, porque eles precisam de apoio, precisam de suporte, é um crime muito bárbaro a violência sexual e muitas vezes ele é um crime silencioso, em que o abusador se insere no psicológico dessa criança, desse adolescente e eles geram um medo de contar, com receios de serem punidos, e eles são vítimas e não fizeram nada de errado para serem vítimas”, disse ela.

O Psicólogo Ronoaldo Machado, também explica como os pais, parentes ou responsáveis podem ficar atentos e principalmente como devem instruir seus filhos acerca desse tipo de violência.

“É preciso ensinar e falar com a criança sobre os direitos que ela tem sobre o próprio corpo, e um dos direitos que são absolutos é o de recusar carinho, um carinho que ela não gosta, em lugar que ela não gosta, e também carinhos de estranhos. A possibilidade de falar não quando um carinho está desconfortável e quando é de uma pessoa que não pode fazer carinhos. E é preciso sim falar sobre isso, porque é melhor educar e prevenir do que correr o risco de não falar sobre isso com o filho e aparece alguém e oferece um carinho, um carinho duvidoso e a criança aceita porque não tem capacidade de discriminar muito bem aquela situação e depois desencadeia no abuso”, explicou ele.

Ronoaldo também disse que há várias formas educativas de ensinar às crianças sobre o tema. Uma delas é o jogo do semáforo do toque que pode ser impresso aqui.

Jogo do semáforo do toque para orientação de crianças.

 

COMO DENUNCIAR

Denúncias anônimas podem ser feitas através do Disque-Denúncia (181) ou do Disque-Direitos Humanos (100). A pessoa não precisa se identificar e o sigilo é garantido.

Você também pode se dirigir à Delegacia da Polícia Civil do seu município ou procurar um DAGV mais próximo de você. Veja aqui os endereços e telefones das DAGV’S de Sergipe.

O DAGV da Polícia Civil de Sergipe atende a um público específico, que frequentemente se torna vítima de diversos tipos de violência como mulheres, crianças, adolescentes, idosos, negros, população lgbtqia+, deficientes e pessoas em situação de rua. 

 


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