Redes de dormir, balanço e descanso. (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 11 de Dezembro, 2022 - Atualizado em 11 de Dezembro, 2022



 

Não conheci berço na infância. Fui criado dormindo na rede (“inis”) até os 13 anos. Até quando mamãe comprou a minha primeira e única cama, fornida, na feira de Itabaiana. Uma cama de braúna legítima. Não foi fácil me acostumar. Era uma cama com o colchão de junco, um capim macio que se vendia de porta em porta. Não sei por onde anda essa cama...

“No ronronar de uma rede/ há como um canto divino/ de uma mãe pobre e cansada/ balançando o seu menino”, mamãe recitava. Não sei com quem apreendeu.

A rede, dócil e macia, toma a forma do nosso corpo. A rede é acolhedora. Nos primeiros dias, dorme-se no meio, para a rede não ficar “pensa”. Falo da rede de dormir.

A rede do pobre nunca se acaba, quando fica velha, corta-se os cadilhos e vira lençol. As redes são eternas.

Eu brincava emborcando na rede, me escondendo de barriga para baixo. Tolinho, acha que ninguém me via. A minha irmã sentava-se em minhas costa, fazendo da rede um balanço.

A rede de balanço, que fica no alpendre, é de todos, inclusive das visitas. O ranger dos armadores se escutava de longe. A rede dos poderosos é quase um trono. Euclides Paes Mendonça recebia os correligionários deitado em sua rede, na varanda da casa.

O séquito ficava no entorno da rede. Euclides não permitia que se pegasse nem nos punhos nem nos cadilhos. Os mais puxa-sacos, balançavam a rede do Coronel com o movimento dos quadris. Encostava e dava um tanjo discreto.

Meu pai Elpídio e o meu tio, Antonio de Genoveva, vendiam redes nas feiras. Eu ainda conheço o cheiro de rede nova, sei avaliar a qualidade, onde foi fabricada.

O meu avô Totonho, depois de morto, teve o seu corpo transportado de rede, no galeio tradicional, do povoado Flechas até as proximidades da cidade, onde foi colocado no caixão e levado ao cemitério de Santo Antonio e Almas.

Quando os portugueses chegaram no Brasil, em 1500, encontraram a rede, está dito por Pero Vaz Caminha. Aliás, foi ele quem batizou a rede com esse nome.

Herdamos dos Tupinambás os banhos de rio, a rede de dormir e a farinha de mandioca (pirão, farofa, beiju, tapioca e puba).

Os índios em Sergipe não conheciam o mosquiteiro, dormiam em suas “inis”, com uma fogueira por perto. O fogo afastava os insetos, os inimigos noturnos, os fantasmas e os demônios. Os diabos dos índios tinham medo do fogo, imaginem se eles iam criar o inferno.

As índias fiavam e teciam as suas redes de algodão. Ainda alcancei a produção de redes domésticas. Depois as redes foram produzidas em fabriquetas, quase artesanais. Na década de 1950, Sergipe possuia15 dessa fabriquetas, hoje, que eu saiba, existem duas.

As redes de tecidos compactos e franjas de enfeite de rendas foi uma contribuição das portuguesas. E as redes finas, de luxo, geralmente brancas, de punhos robustos, as chamadas redes de varanda, vinham do Ceará.

Aliás, a rede (hamaca) era conhecida por todos os índios da atual América Latina. A maca descende da hamaca e o pai é espanhol. A rede de dormir nasceu no continente americano. A rede já serviu de transporte para os senhores de escravos, um tipo de liteira.

A queda de rede é fatal para os velhos. No geral, dorme-se em redes altas, para se evitar os bichos rastejantes, os ventos miasmáticos e poder se equilibrar em caso de queda. A queda em rede baixa, quem escapar, fica sem caminhar por um bom tempo.

“Para dormir numa rede/ cumpre logo prevenir/ não é chegar e se deitar/ nem é deitar-se e dormir/ Tem de procurar o jeito/ de se deitar enviesado/ pois não dando esse jeitinho/ não está, em regra, deitado/ E em se deitando, deixe sempre/ um certo espaço, porque/ vem o anjo da guarda/ deitar-se, e dormir ao seu lado.” – Adelmar Tavares.

“A rede nos acompanha desde o primeiro dia ao último – é berço, é leito nupcial, é cama de enfermo, é caixão de morto”. Rachel de Queiroz.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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