Morte Voluntária. (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 25 de Dezembro, 2022 - Atualizado em 25 de Dezembro, 2022

 

 

“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.” – Camus.

A morte voluntária já foi crime. Os suicidas não tinham direito ao sepultamento religioso (o suicídio era considerado uma ofensa a Deus, que nos deu a vida).

O suicídio não é uma morte demográfica. Antes de se tornar objeto da psiquiatria, o suicídio tinha significados filosófico, religioso, moral e cultural.

O desembargador envelhecia só. Viúvo e sem filhos. O seu medo era perder a autonomia para as coisas prosaicas. Era um homem do século XX, não se sentia bem ter as suas partes intimas higienizadas por cuidadoras. Não quero dar trabalho!

Filho de fazendeiro do Sul de Sergipe. Nasceu em 24 de dezembro, Natal de 1942. Teve paralisia infantil aos sete anos, por isso, mancava discretamente da perna esquerda. Nunca foi protagonista, mas passou em tudo. Virou Juiz de Direito.

Padre, Juiz ou Coronel, era o desejo do seu pai para o filho único. Ele cumpriu. O desembargador foi um magistrado honrado, na medida do possível.

O desembargador não era um erudito, mas dominava o português clássico, poetizava de vez em quando e tinha um vasto domínio da literatura. Moralmente, um homem de palavra.

Conservador, tinha saudades dos governos militares. Não simpatizava com Bolsonaro, mas para ele, nada era pior que o PT, gente sem princípios. Segundo o desembargador, são todos arrivistas. Quando chegam ao poder, tornam-se “novos ricos”. Cuidam logo de aprender a distinguir os vinhos e os modos de comportar-se à mesa. São burgueses do patrimônio público.

A velhice era solitária para o desembargador, tinha uma aposentadoria generosa, mas faltava-lhe afeto e sentido para a vida.

O desembargador matutava: só o homem é capaz de refletir sobre a sua própria existência e tomar a decisão de prolongá-la ou pôr fim a sua vida.

"Completo hoje 80 anos. Chega!"

O velho e cansado desembargador recitou aos brados, na sacada do seu apartamento, na Rua da Frente, olhando o poluído Rio Sergipe e tomando o bafo da maresia e dos resíduos depositados pela Deso:

“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas/ Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja/ Ou insurgir-nos contra um mar de provocações/ E em luta pôr-lhes fim? Morrer… dormir: não mais.” – Shakespeare (Hamlet)

Antes da missa do galo, o desembargador chamou Dona Rita, empregada da casa há 50 anos, e comunicou-lhe a decisão: “Hoje é a minha despedida! Não quero ser tragado pelas doenças.”

“Não tenho nem fortuna nem herdeiros. Passei o apartamento para você, está aqui a escritura. Venda-o, para completar a sua aposentadoria. O valor do condomínio é três vezes a sua renda.”

O desembargador ingeriu a cicuta fatal. Morreu rindo, dignamente, segurando a mão de Dona Rita. Escolheu o veneno, como morrem os filósofos.

Dona Rita não tinha a quem avisar. Esperou amanhecer e chamou o síndico. O velório foi ali mesmo, sem choros, nem rezas.

Descanse em paz, pacato homem!

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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