O caroço de Rufino. (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 07 de Janeiro, 2023 - Atualizado em 07 de Janeiro, 2023

 

 

“A única parte útil da medicina é a higiene, e esta, mais do que ciência, é virtude. – Rousseau.

Rufino de Oliveira, 68 anos, se aposentou com os vencimentos integrais e paridade. Era um funcionário público qualificado, em final de carreira. Finalmente, disse ele, agora vou gozar a vida.

Rufino é um crente na medicina, sempre se cuidou. Comida
regrada, bebida só uma taça de vinho bom de vez em quando, caminhadas diárias, nunca fumou. Mantinha a glicemia abaixo de 100, com grande sacrifício. Não comia nada que gostava.

Quando os médicos disseram que ovo fazia mal, ele suspendeu imediatamente. Só quando a medicina percebeu o engano, Rufino voltou aos omeletes.

No último check-up, os exames apontaram um pequeno nódulo na base do pulmão. Uma coisita, menor que um caroço de feijão. Levou o exame para o seu clínico, que fez um comentário despretensioso: “isso não é nada, mas de todo jeito, não é bom arriscar”.

Rufino entrou em desespero e encucou: qual é o risco, como isso pode evoluir, existe tratamento com remédios? O clínico foi evasivo, “nunca se sabe”!

Rufino procurou na internet um bom cirurgião torácico. Descobriu que em Recife, tinha o Dr. Wescley Assunção, especializado na Alemanha, só em tumores na base do pulmão.

Rufino disse: é esse! Fez os contatos. Um detalhe, o Doutor do Recife só atendia particular. Nem o caríssimo “Salude Plus-Plus”, o plano de Rufino, cobria.

Procurou saber quanto custava. Exatamente, setenta mil reais. Rufino não tinha. Pensou, vou vender a sala no Play Center e me livro desse caroço.

Pediu um encaminhamento ao seu clínico, que hesitou: eu não faria, mas você quer, está aqui. Rufino pensou calado: filha da puta, me faz medo e agora quer tirar o dele da seringa.

Rufino estava decidido: vendeu a sala, viajou a Recife e fez a cirurgia. Depois de muito sofrimento, o resultado foi um alívio: não era maligno. Um carocinho de sebo.

No retorno procurou o seu clínico em Aracaju. “E aí Rufino, o que achou do Dr. Wescley”, perguntou o clínico. Eu não o conheci, quando ele entrou no centro cirúrgico eu já estava anestesiado e saiu antes que eu acordasse. As três visitas foram feitas por seus assistentes. Wescley mesmo, não sei quem é.

O Clínico retrucou, você não o conheceu e nem precisava. Você pagou para cuidarem do seu caroço, e eles cuidaram, não estava incluído cuidar de você. Não entendi, eu gosto dos médicos humanistas, reagiu Rufino.

Humanistas? Você estava acostumado com médicos que lhe tratava como criança, disse o clínico, que sabiam de tudo e você só obedecia. Antes do mercado, disse o clínico, a relação já era de submissão.

Veja os significados dos termos usados: enfermo, o que perdeu a firmeza; doente, o que sente dor, molesto (moléstia), o que carrega um peso e paciente, aquele que sofre a ação.

Entendeu, meu amigo Rufino? A medicina científica, de mercado, cuida de doenças (objeto) e não dos doentes (pessoas). O doente é um cliente, um consumidor, um usuário, que busca um procedimento no mercado. Acabou o mi-mi-mi.

Rufino não entendeu. Foi para casa, esperar que os agravos da grande cirurgia passem, para ele gozar a sua esperada aposentadoria.

O dinheiro da sala que vendeu foi bem empregado, teve o seu lado bom: Rufino ficou livre do caroço.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

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