Quem comeu Sardinha? (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 24 de Janeiro, 2023

 

A história oficial revela (equivocadamente) que o único prelado submetido ao ritual antropofágico nas Américas, em junho de 1556, durante a realização do Concilio de Trento, foi o Bispo Sardinha.

A confusão aumenta quando a história imputa a façanha aos Caetés, num suposto naufrágio ocorrido nos arrecifes de Coruripe, em Alagoas.

O historiador Moacyr Soares Pereira, fundamentado nos arquivos dos Jesuítas em Madri, já desmentiu essa versão. O Bispo Sardinha foi comido na Praia Santa Isabel, entre Pirambu e Cabeço, na enseada do Vaza Barris, em Sergipe. E pelos Tupinambás!

Os historiadores das faculdades nem desmentiram Moacyr, nem concordaram, sendo mais preciso, nem prestaram a atenção. O Bispo continuou sendo comido pelos Caetés.

Relendo o velho João Ribeiro (o sergipano), encontrei outra versão, mais verossímil, sobre Dom Pero Fernandes Sardinha. Dado a importância para a história, transcrevo o texto na íntegra:

“A MENTIRA DO JUDEU – João Ribeiro.”

No ano de 1593 estando em Olinda o Licenciado Heitor de Mendonça, Visitador do Santo Ofício, foi denunciado à sua presença um velho adelo e roupavelheiro de nome Gil Gomes, acusa do de judaísmo.

Declarou Gil Gomes que era cristão velho, natural de Almeirim, observante da fé de seus pais e que muito jovem viera do Reino para a Bahia e aí servira de sacristão do bispo Dom Pêro Fernandes Sardinha a cujas abas e proteção vivera por dous ou três anos.

A este ponto, o Visitador que tomava apontamentos para o seu Tratado Sentencioso, Moral e Descritivo do Brasil, interessado pelo depoimento, perguntou se efetivamente o bispo tinha sido comido pelos caetés.

Pelo contrário, disse o velho Gil Gomes; o bispo não foi comido e até foi ele quem comeu. Mentes, miserável judeu! Como podes afirmar semelhante cousa? Morrerás a fogo se não falares verdade.

Mas, refletindo nos apontamentos do seu Tratado Sentencioso, animou o judeu a dizer tudo o que sabia.

Senhor Visitador, eu estive no naufrágio da nau Nossa Senhora da Ajuda que se quebrou nos parcéis do Cururipe.

Os náufragos fugiram e ficamos em terra, apenas dous, o bispo e eu. Haverá mais de cinquenta anos que isso foi, e é bem possível que minha memória enfraquecida cometa algum desfalecimento.

Prossegue, ordenou o Visitador. Ficamos os dous, e realmente seríamos comidos dos caetés, não fôsse uma inspiração minha que lembrei ao Bispo a conveniência, na quele transe, de dizer uma missa. E assim se fêz.

“Armamos um tôsco altar, alçamos uma cruz feita de lenho da floresta e o bispo rezou a missa que supunha ser a última do seu mister. Mas qual não foi o nosso espanto, vendo o gentio ajoelhado, mudo e contrito, diante do santo sacrifício. As próprias aves em torno entoavam louvores ao Senhor.

“Estávamos salvos!

“O cacique Tejuguaçu desde então se tornou o maior amigo de Dom Pêro, a quem fez particulares obséquios, e deu-lhe para o seu serviço a gentil e formosa Ganumbi, a flor da taba caeté.

"Ao santo cresceram-lhe as barbas que a indiazinha anediava docemente, quando num Dia de fortes calores, Dom Pêro, tentado do demônio, chamou a si a linda Ganumbi e comeu-a a dentadas..."

Mentes ainda, miserável judeu! Clamou o Visitador indignado; mas pensando nos apontamentos para o seu Tratado Sentencioso, ordenou ao judeu que prosseguisse.

Realmente (continuou o judeu) eu nada vi por meus olhos, mas vi que todos os índios gritavam: “O abaré comeu a índia! Abaré comeu Ganumbi!”

“E já aprestavam a desforra. As velhas dançavam e punham a ferver o cauim para banquetear-se nas gorduras do santo homem. Dom Pêro arrependido, consternado, em lágrimas, de sua própria mão foi buscar a tangapema, espécie de clava com que havia de ser abatido, sacrifício pequeno para o seu grande erro.

“Foi neste ponto que chegou Tejuguaçu, o cacique, que dando um pontapé nas igaçabas de cauim livrou Dom Pêro da morte.

“— O abaré é meu amigo, disse o cacique. Não faltarão por aí outros Perós para serem comidos.

“E como eu era o único Peró (assim chamam eles aos portugueses) que ali havia , dei à perna quanto pude e vim parar à Capitania de Pernambuco."

Aqui acabou o depoimento. Gil Gomes foi remetido a Lisboa, como judeu mentiroso, negativo e relapso, para os cárceres da Inquisição.

Antonio Samarone (médico sanitarista)

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