São Bento, antes das cobras... (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 26 de Fevereiro, 2023



 

Álvaro Silveira, médico sespiano, formada na Bahia, clinicou durante décadas no interior de Sergipe. Hoje, com 93 anos. Silveira me confessou possuir o secular “Canon da Medicina”, cinco volumes, em francês. “Essa enciclopédia da medicina árabe, sempre foi o meu guia”.

Ele aprendeu francês para ler Ibn-sina e a anatomia de Testut.
O doutor Silveira é um sábio da arte médica erudita. Ao longo de duas horas, me fez um síntese histórica da medicina. Deixo aqui o que consigo me lembrar:

A medicina no Brasil é filha da medicina portuguesa. A cantada origem greco-romana, Hipócrates e Galeno, é pretensão. Talvez, uma reduzida influência árabe (Rhazes e Avicena), trazida pelos cristãos novos. O “canon”, nunca foi traduzido no Brasil.

A medicina brasileira nasceu nos mosteiros de Coimbra. A assistência médica no Brasil era parte das obras de caridade, das Santas Casas de Misericór-dias. Os jesuítas foram os primeiros a exercerem a medicina.

O doutor Silveira foi um curioso do saber popular sobre as doença, as curas, as crença e as superstições da populacho. Disse-me que aprendeu na centenária Faculdade de Medicina da Bahia, que o médico deve conhecer os costumes e o modo de vida do lugar onde for exercer a medicina.

Na Malásia existe um demônio para cada doença. No Brasil, existe um santo protetor: Santa Luzia (doenças das vistas), São Bento (mordida de bichos peçonhentos), Santo Antão (fogo selvagem e erisipela), Santo Apolinário (contra as quebraduras), Santo Amaro (contra os achaques das pernas e dos braços) e São Brás (contra os achaques da garganta).

Lembrei-me da infância. Mamãe sempre apelou a São Cristóvão, o protetor das crianças com fastio. Ela era obcecada: sempre achou que os seus filhos comiam menos do que o necessário. Sempre achava que cabia mais um bocado.

O fastio era um sinal de gravidade de alguma doença oculta, um alerta de que a saúde não andava bem. A gula, mesmo sendo um pecado capital, era bem-vista lá em casa. A obesidade epidêmica é coisa nova.

Muitas vezes, a medicina popular era o único recurso, enfatizou o doutor Silveira.

Jogando bola, tive uma luxação no cotovelo esquerdo. Mal reduzida e engessada de qualquer jeito, no Hospital de Caridade em Itabaiana. Fiquei com uma sequela pavorosa: a articulação ficou imóvel, em 90 graus. A fisioterapia foi a base de sebo de carneiro capado. Aquecia-se o sebo e massageava-se a parte afetada. Foi a salvação!

O doutor Silveira está com a memória quase perfeita. Lembra-se do principal sobre os pacientes, os sofrimentos, os erros e as curas. Um médico que exerceu zelosamente a sua arte.

A desidratação decorrente da insolação, era vista como “olhado”. Tratada com rezas e benzeduras. Passava-se o ramo de vassourinha. No Beco Novo, a xamã era dona Gemelice, que possuía o verdadeiro livro de São Cipriano.

O povo era alucinado por milagres. Por isso, tantas promessas. Dona Dorotéia curou-se de um enxaqueca reincidente, com a promessa de usar luto fechado durante as quaresmas, pelo resto da vida. Cumpriu religiosamente, até morrer.

A medicina científica sabe muito sobre o corpo e quase nada sobre a pessoa, tornando-se aleatória a separação do essencial do secundário. Essa é a principal base dos seus erros. Quando essas análises são contaminadas pela lógica comercial do lucro, os erros acentuam-se, sentenciou o dr. Silveira.

O comércio e o lucro, distorcem mais a prática médica que a magia e a superstição. A medicina pós-moderna no Brasil é majoritariamente uma prática econômica, com o figurino da ciência.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

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