O direito das crianças. (por Antonio Samarone)
As crianças do meu tempo eram educadas pelo espancamento.
No Beco Novo, Rosalvo da Cabo Quirino surrava os filhos (Rosa, Robério, Negro Velho e Banhinha, com tanta disposição, que os gritos dos meninos eram ouvidos à quilômetros.
Os critérios das surras eram próprios e secretos. Rosalvo não tinha satisfação a dar. Saiu da linha, o pau comia.
As minhas surrinhas eram palmadas, cascudos e puxavantes de orelha, nada próximo das surras de Rosalvo nos filhos.
De cinturão, cinturão mesmo, só apanhei duas vezes. As duas merecidas: zombei de idosos. Os pais que não batessem naquele tempo, eram tidos como relapsos e censurados pela sociedade.
Apanhava-se em casa e apanhava-se na escola.
As professoras eram mais técnicas, batiam com a palmatória, quando elas achassem que o aluno merecia.
Existia uma técnica pedagógica chamada de sabatina. A turma formava uma roda. A professora fazia uma pergunta. O infeliz não sabia, a pergunta passava para o próximo até alguém acertar.
Quem acertasse era obrigado a bater com a palmatória nas mãos de todos os que tinham errado.
E assim, nesse batido, a sabatina durava horas. A pedagogia do medo.
Nas escola ainda tinha os castigos cruéis (ajoelhar-se sobre caroços de milho), e os humilhantes (ficar em pé, com o rosto virado para a parede), num canto da sala.
Rosalvo do Cabo Quirino era o motorista do padre. Ele aprendeu que na tradição portuguesa, quando um condenado ia à forca e a corda se rompia, ele poderia ser amparado pelo manto da Irmandade de Misericórdia. Se a corda se partiu, é porque havia alguma injustiça na condenação.
Rosalvo conhecia todas as obras de misericórdia, mas só exercitava uma: castigar os que erram. Sobretudo os filhos.
As obras de misericórdia são sete corporais: remir os cativos, visitar os presos, curar os enfermos, cobri os nus, dar de comer aos famintos e de beber a quem tem sede, dar pouso aos peregrinos e enterrar os mortos.
E sete espirituais: ensinar aos simples, dar bom conselho a quem pede, castigar os que erram, consolar os desconsolados, perdoar os que nos injuriam, sofrer as injurias com paciência e rezar pelos vivos e pelos mortos.
Mutatis Mutandis, Rosalvo achava que enquanto Deus lhe desse força no braço e a chibata suportasse o tranco, eram provas da justeza do seu espancamento. O detalhe é que ele batia nos filhos com fio elétrico e, até onde eu sei, nunca se partiram.
Rosalvo eram um homem piedoso, probo, irmão das almas, funcionário da paróquia, caridoso, mas não transigia na educação dos filhos.
Antonio Samarone (médico sanitarista).
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