Carta aberta a Valeriano Felix dos Santos (in memoriam)

Só uma alma de poeta para registrar em verso o Festival Multicultural de Inverno ocorrido em tua terra Palmares.

Domingos Pascoal, 18 de Novembro, 2022 - Atualizado em 18 de Novembro, 2022

ALMA DE POETA

Carta aberta a Valeriano Felix dos Santos (in memoriam)

Saudoso amigo,
Só uma alma de poeta para registrar em verso o Festival Multicultural de Inverno ocorrido em tua terra Palmares. Somente ela poderia colocar em palavras os gestos animosos, os olhares felizes e auspiciosos, os sorrisos largos, os braços encobertos e abertos em calorosos abraços, em um delicioso clima acolhedor, tal qual um cobertor de lã quentinho em uma noite fria de inverno no alto da serra. E é inverno. E a serra existe. E o frio existe. E o cobertor também existe. E aquece a todos no alto da serra. A tua Serra, meu amigo. Igual berço de Raimundo Monteiro e tantos outros palmarenses. Serra que, nos memoráveis vinte e vinte e um de agosto, do ano vinte e dois, transformou-se na serra de todos.
Só uma alma de poeta poderia transcrever em linhas, com a honestidade devida, os sons ali ecoados: do burburinho ao espocar dos fogos; da zabumba à batucada; da trova ao samba; dos acordes do violão às orquestras. E o Encontro das Liras?! Ah, meu nobre amigo, não sei qual o encontro maior, se o delas ou o dos nossos corações apaixonados, arfando ao vê-las, como os das jovens ante o primeiro amor!
Meu caro, como versar o compasso e o descompasso do peito estudantil declamando, em meio ao passeio público, os poemas em homenagem ao seu amigo Raimundo? Diz-me tu, nobre escritor, como fazê-lo. Você, que do mistério à objetividade, do cordel ao jornal, de A mulher que se casou dezoito vezes... (ficção) à Tia Policarpa (realidade), versou e encantou a todos pelo domínio da palavra-arte ou da palavra-notícia. Você saberia dizer a todos, em ampla voz, aquilo que não consigo expressar nem a ti neste particular. E teus versos diriam ainda: “Venham, venham conhecer minha terra / e provar do friozinho ao pé da Serra!”
Mas deixemos de cuidar de ti e voltemos ao ocorrido. Que evento! Desde a primeira hora, o Festival prometeu e cumpriu. Desfilou beleza! Falta-me a alma de poeta para descrevê-lo! Consola-me, porém, saber que ele ficou cravado, com marca inapagável, na memória da nossa gente, da nossa terra e da nossa história. Como versar tanto primor?! Impossível é, até mesmo, contar-te tudo nestas linhas íntimas, em que, supõe-se, poder correr, livremente, a palavra. Só a imorredoura palavra poetizada conseguiria tal feito. Não sou poeta, só escrevo. Ficarei a dever-te. Haverás de me perdoar. Afinal, para isso também servem os amigos. Neles a compreensão e o afeto.
Só uma alma de poeta para dizer-te das mãos ligeiras, ansiosas por deixarem a tua Serra ainda mais bonita. Proeza inimaginável! Mas, caríssimo, a tua Palmares ficou linda! Bela como menina em flor, na janela, imaginando o amor. As ruas enlargueceram e estenderam seus braços como mulher à espera do amado. E o frio pareceu esconder-se, pareceu nem estar lá, aquecido que foi, ele também, pelo pular, pelo bailar dos corpos cadenciados ao ritmo de tantas danças. Ah, nobre amigo, foram multiapresentações: do Samba ao Samba de Coco; do Reisado aos Pífanos; do São Gonçalo à Dança de Roda; do Queiroga e Rogério ao "Moranguinho do Nordeste"; do "Fogo na Saia" ao cantador de toadas; de Danielzinho ao jovem cantor da "Ave Maria sertaneja". Emoção indizível! E pensas que parou por aí?! Não. Os organizadores foram incansáveis! Fizeram desfilar ainda os artistas da terra: Eraldo, Leila, Rogério, Fabão, Dudu, Marcos e Ari. “Todos cantaram pertinho, ali, / na serra onde nasce o Piauí.” Percebeste a rima? Esta foi para ti, meu nobre cordelista. Ah, se tivesses aqui, farias um cordel inteiro. Eu nem ouso. Só alma de poeta para conseguir tal maestria.

 

Ilustre Valeriano! Teria mais a falar-te acerca deste Festival, porém, esta já me vai longa. Preciso ainda falar do crochê e do tricô. Artes da Serra. Fruto das mãos das mulheres palmarenses. Mães, filhas, primas, irmãs, tias, avós, esposas, sobrinhas, netas, sogras, noras e comadres da Serra. “Mulheres que fazem!” E os casacos desfilaram. E os braços se tocaram e se entrecruzaram, renovando a arte primeira do seu amigo Raimundo, acolher bem a todos quantos subiam a Serra. E fez-se a exposição! E todos aprenderam mais sobre ele e tua terra Palmares. Ele foi o tema do Festival. E não podia ser de menor feito. Dele adveio tudo o que é sabido, hoje, sobre Palmares – a antiga "Igreja Velha dos Palmares". Por falar em igreja, ela estava lá, iluminada, imponente, como a falar para todos da antiga tradição Carmelita, trazendo em seu altar-mor a imagem de Nossa Senhora do Carmo. E não podia ser diferente. Afinal, tudo começou com os Freis. Tudo começou pela fé. E Nossa Senhora do Carmo hoje nomeia a escola de onde vieram os alunos que homenagearam o Raimundo.
E os cachecóis desfilaram. E os jovens, as crianças e os adultos também. E os moradores de perto e de longe vieram. No fim, o “frio na barriga” dos organizadores, que venceu o frio da Serra, se aqueceu, se rendeu e desapareceu, pois tudo estava lindo, muito lindo! Um sonho vivido, sentido, palpável. O recém-nascido já nascera grande! E cultura, artes e história também desfilaram. E fez-se história! E outros festivais já são esperados. Que passem as estações! Que venha a primavera com suas flores, o verão com seu calor e o outono com seus frutos! E novamente o inverno trazendo o Festival Multicultural de Inverno de Palmares!
Que seja o seu nome o tema do próximo festival! Afinal, você e Raimundo, amigos em vida, amigos em morte. Partiste definitivamente do teu torrão natal em um dia como o de hoje, nos idos de 24 de agosto de 1996, e, no mesmo ano, aos vinte de dezembro, seu amigo também partiu. Amigos no tempo, amigos no espaço, amigos na história. Por que não amigos nos festivais? Juntos cantaram a Serra. Você para os de fora. Raimundo para os de casa. E quanto ao festival... Por ele subimos a Serra com uma facilidade impensada. Difícil foi descer. Não veja nisso, meu caro, um paradoxo. É que queríamos todos nos demorar mais um pouquinho por lá. E ficar sentindo o friozinho do lugar. E ficar “cochilando à tardezinha, / em um alpendre nordestino, / numa rede bem fresquinha / No bercinho do Piauí”, como versou o Andrade. O Mário? Não. O Manoel, nosso conterrâneo.
Quisera eu ter alma de poeta para cantar esse Festival! Dá-me, ao menos, da tua pena um pouco da maestria, para que eu saiba agradecer. Creio, porém, que para isso não precisa ter alma de poeta, só um coração deveras agradecido. Ah, e isso eu tenho, meu amigo! Ao nobre Raimundo Monteiro por nos ter legado tantos conhecimentos sobre tua terra. A ti, caríssimo, pela obra Palmares de Sergipe na biografia de Raimundo Monteiro, da qual fiz uso para conhecer mais sobre a tua terra e sobre o próprio Raimundo e cuidar da parte escrita e versada do Festival. Agradeço, meu amigo, agradeço. E espero não o ter enfadado com tão longa missiva. Mas amigos também são para isso, para ficarem conosco, nos escutando, quando outros, cansados, já não quiseram mais ficar. Agradeço aos organizadores e àqueles que encheram a tua terra berço de brilho, cores e mimos; de braços, pernas e povos; de música, danças e sons. Por fim, “Obrigada ao Senhor Deus, / o autor da criação, / por nos ter dado ali, / bem pertinho do coração, / Tão bela e linda Serra, / origem do Riachão!”

Edleide Santos Roza
(Professora Ma. da rede pública de ensino do município de Riachão do Dantas)

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