A TROVOADA

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 27 de Janeiro, 2024 - Atualizado em 27 de Janeiro, 2024

A TROVOADA

A quentura campeou nos ares da região; o sol tomou conta de tudo, deixando um mormaço de pelar porco! O vento, durante o dia, parou, para se alvoroçar da boca da noite até a madrugada. Foram dias de vertigem, sem um alívio sequer. Era de fritar ovo nas pedras, derreter o solado dos pés na areia quente da malhada. As Mulheres grávidas desmaiavam de tanto calor. A quentura tomava as mulheres, com suas vestes longas, a ponto de darem a macacoa. 

De quando em quando, o vento varria o terreiro, levantando a poeira do chão acinzentado e deixando o ar ainda mais pesado, dando um tom de abafamento desumano. O suor escorria, numa sangria desatada, dando lição aos minadores torridamente ressecados. O ar era tão quente que deixava os cabelos em pé. Assim se passaram os dias de dezembro e de janeiro, com altas temperaturas.

Zabelinha de Mané Subaco, devota do Senhor São Pedro, deu de ir ao Jacarecica, diariamente, com uma cabaça antiga, herdada da avó materna, a finada Joventina de Zeca de Terêncio, para trazer água fresca e despejar no pé do mastro do Santo das águas. Enquanto caminhava, cantava em voz alta o Ofício das Almas, numa toada que deixava mais triste o cenário de um verão estarrecedor. Ao se abaixar, para verter a água da cabaça, rezava a jaculatória do Padroeiro das chuvas. Em seguida, botava-se de joelhos e suplicava por chuva, batendo um molho de bassorinha no caule do mastro, até murchar. O rito se repetia por longos dias.

No princípio, ninguém se deu conta do ritual, mas, com o passar dos dias, ficou visível, devido ao horário em que a pobre passava com a cabaça de vinte litros d'água, abalando a cabeça e o fino pescoço, desarticulando-o do espinhaço, no vai e vem da água em remanso. Puseram-se a botar sentido naquela romaria diária que a filha de Mané Subado se dispôs a oferecer, à espera de ver o terreiro molhado. A bicha era certeira! 

Vinha ao meio dia, quando o sol estava a pino, de pés descalços, embora com mangas longas e perneiras, para se resguardar do mormaço infeliz que já havia esturricado muitas fontes, queimado o capim, secado as folhas da mandioca, e retirado aos bichos o bom bocado de cada dia. Deslizava por sobre a areia escaldante da estrada, como se estivesse numa barra de gelo. Não fossem os abalos do remanso da água a abalar a cabaça, mal se podia imaginar que a tal estivesse andando.

Após três semanas e meia de ritual ao Chaveiro do céu, a barra começou a escurecer o céu, aumentando ainda mais as marcas impiedosa da quentura, que parecia uma coivara em toda a terra. Eram os primeiros sinais de valia das preces da devota de São Pedro. Ainda não era o suficiente. De qualquer modo, assuntava ela, o meu Santinho já se levantou para abrir as comportas, pois os sinais a Natureza já está nos mostrando.

Zabelinha se tornava mais afamada, por suas rezas de pedir chuvas a Deus. Era pá, casca! Nunca falhou um só verão. Suas caminhadas ao Rio fortaleciam as nuvens, abalavam o coração do Senhor São Pedro, de modo que as águas despencavam dos ares, como se a mando das rezas da beata mais vistosa do Cajueiro. Eita, devota danada para alcovitar o Santo! 

O tempo mudou, de uma hora para outra, o vento deu, mas se aquietou, para de atiçar novamente; as nuvens coraram e a "trevoada" estavam em riba! Tirem as roupas do arame!, gritava Doninha, com os olhos fixos nas espessas nuvens que se tornaram da cor de breu. O vento deu de açoitar as folhas das mangueiras, fazendo cair as mangas verdinhas, protelando a safra. "Arriem o serviço da maiada e corram pra casa, porque tá relampiano demais! O corisco pode torar um ao meio! Valei-me Santa Bárbara Virgem! Acuda, São Jerônimo! Num salembram da finada Da Cruz, de Totonho de Zabelê, cuma a probe ficou torrada pela pedra que veio das nuvens? Oxente! Se tem trovoada, tem de se respeitar a ira divina... Quem pode o contrário? Quem não arrespeita as horas de Deus, vai morrer tal e qual um herege"!

Os homens corriam da malhada, deixando para trás as enxadas, foices, facões, gadanhos ou enxadecos. Nada que tivesse ferro poderia ser tocado. Os bichos eram protegidos nos currais improvisados, nas palhoças, em qualquer lugar que os mantivesse em segurança. Em casa, os espelhos eram cobertos ou virados para a parede, para não refletirem a faísca do relâmpago. As portas e janelas eram bem cerradas, a fim de o vento não levar tudo de eito. ninguém dava um pio! Se o corisco caísse ali por perto, todos estavam protegidos. E a ventania... essa poderia arrancar unas telhas do beiral, como fez no verão passado, na Casa de Totonho da Baixa da Coxa, quando o casarão quase foi ao chão. Ainda bem que Teodoro estava de butuca, e refez tudo num instante. quem pode, pode!

O Cajueiro inteiro emudecia, para que, num misto de medo e de respeito sagrado, a trovoada roncasse forte, escurecendo tudo, enchendo os riachos, as fontes, cacimbas e estradas, lavando os terreiros, quebrando os paredões, trazendo uns peixinhos e camarões para os barrocões e fortalecendo a alma reprodutora da terra, que parecia sorrir aliviada. Agora a fartura era ligeira... Verão bom é verão de trovoada! A carestia, na feira, estava de dias contados... uma grandeza!

Passada a tormenta, era hora de cantar o início da plantação, com as rimas apropriadas, versos de louvação e benditos populares. Doninha e sua gente eram os únicos que se lembravam de agradar a Zabelinha, com uma compoteira de doce de jaca mole. A pobre solteirona era amiga de São Pedro e atiçava o santo para trazer chuvas de verão. Não fosse ela, ninguém se botaria para falar com o Santo. A beata tinha intimidade com Ele.
Com Zabelinha, a trovoada de janeiro nunca falhou um só ano.

Jerônimo Nunes Peixoto

 

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