ESTÊVÃO, O ESTOUVADO

Por Jerônimo Peixoto

Jerônimo Nunes Peixoto, 26 de Outubro, 2022 - Atualizado em 26 de Outubro, 2022

 ESTÊVÃO, O ESTOUVADO

 Nascido e criado no Cajueiro, filho de mãe solteira e de pai oculto, por causa das regras tradicionais da família de bem casados, Estêvão, desde cedo amargou os piores bocados que a vida lhe pôde oferecer. Na quadra, quem nascia de mãe solteira era tido como objeto de escárnio, uma espécie de bobo da corte, do qual se tiravam as piores pilhérias, e o sujeito não poderia responder, porque era desprotegido, sem pai, sem nome, sem voz e sem vez.

Sua matrona, cujo apelido era Moça,  mulher da vida, desonrada e tida por perdida, não angariava a boa querença de nenhuma das mulheres do lugarejo, porque a tinham na conta de concorrente. Ela vivia de se engalfinhar com os homens alheios, numa atitude desenvergonhada de quem não tem tenência para a vida familiar. Era enxotada, de casa em casa, quando a uma se dirigia para pedir uma mancheia de farinha, um cozinhado de aipim ou um ovo. Nunca era bem acolhida, porque sua sina era a da vadiagem, coisa de mulher ruim.

 Somente na casa de Sá Doninha, mulher de seu tio Jerônimo, ela era aceita. Doninha, mesmo acolhendo a sobrinha torta, dava-lhe conselhos, e lhe receitava umas diárias de patacas, a fim de que pudesse ir à feira da vila, para comprar um quilo de tripa, uma corda de caranguejo ou uma tira de jabá. Embora a pobre mostrasse disposição para enfrentar a malhada ou a raspagem de mandioca, em épocas de farinhada, tinha dez filhos pequenos, além de Estêvão que já contava bem uns quatorze anos.

 Aproveitava da acolhida da velha Doninha e a ajudava com os terreiros barridos, com os potes cheios e com a lenha cortada. Quando o tempo estava de chuva, ajudava a tia matrona com a lida das roupas estendidas no arame farpado. Era agradecida e tinha bom coração, mas não tinha orientação de ninguém. Faltou-lhe tudo o que serve para orientar as moças de família: os pais morreram cedo, deixando-a órfã e sem qualquer perspectiva. À frente de seu nariz enxergou sofrimento, exploração, insegurança, incertezas e trevas. A nuvem da fome e do desprezo a rondava, dia e noite, e a fez companheira das tormentas e dos escárnios, dos ultrajes que o povo da redondeza lhe impunha.

 Sua mãe, a velha Antônia, irmã de seu Jerome, depois de um mês de viuvez começou a ter perturbações e, em poucos dias, foi tida como doida de pedra. Morreu nova e deixou os filhos soltos feitos filhotes de nambu, sem ninho, sem pai, sem mãe e sem orientação. Cada um ganhou um rumo e um tino, de forma que a sorte de Moça foi a de dar para a vida, desde que se pôs mulher. Vivia nos tabuleiros com certos rapazotes, ou com homens de bem – por ocasião do resguardo da esposa – a mendigar uma pataca. Aparecia buchuda todos os anos, sem poder confidenciar quem era o pai. Por vezes, nem ela mesma sabia, porque era muito requisitada, por falta de mão-de-obra naquela especialidade.

 Quando Estêvão nasceu, um dia depois do Natal, a parteira lhe deu este nome, por ser o do Mártir Estêvão, homem valente que defendeu o nome de Nosso Senhor! Quando soube da história do santo, Moça acedeu, porque não poderia haver sina melhor para o menino que já nasceu sem sina. Ter nome de santo poderia aliviar-lhe a dor e o pranto, nos instantes de fome, humilhação e sujeição. Uma ajudinha do céu nunca faz mal...

 Estêvão, como todos os de sua casa, era adiantado: falava, sem ser questionado, metia-se na conversa alheia, e intrometia a colher onde não era chamado. Por isso, era usado para dar conta da vida alheia, quando um fato ocorria: moça que fugia; casal que se separava, roubo de galinha, chifre em comboieiro, carreiro ou carpina. O que tinha de estouvado tinha de trabalhador. Desde os treze anos tornou-se pataqueiro e vivia de malhada em malhada, limpando bamburral, abrindo cova ou roçando pastos. Os sitiantes que o contratavam ficavam satisfeitos com o seu trabalho, mas amolavam os ouvidos e a cachola, porque escutavam o rapazote falar tudo o que sabia e o que não sabia.

 Certa feita, Estêvão foi a uma malhada, contratado por certo carreiro que viajava para a Boca da Mata, toda quarta-feira e só retornava no domingo. De tanto falar sobre a vida alheia, ininterruptamente, o rapaz ficara sabendo que um parente próximo estava de sentinela na casa do viajante. A mulher do carreiro sofria de insônia e passou a se alegrar com a visita do parente de Estêvão. Como as visitas se tornaram mais frequentes e mais demoradas, viraram pauta para o menino loroteiro. Na malhada, durante a lida pesada, jogar conversa fora era uma boa distração, porque aliviava o penar daquele mancebo, ainda na flor da idade.

Ele, conversando sobre as novas da região, não tradou em mencionar as visitas de certa pessoa à casa do “Pratão”. Todos caíram na gargalhada, mas o carreiro ficou de orelha em pé. Mandou botar tocaia, para ver quem seria o enxerido que estava rondando seu terreiro, nos dias de sua viagem... Sabedor da novidade, contada pelo mesmo Estêvão, o visitante deu três Patacas de agrado a Estêvão e lhe pediu para ficar de bico calado. 

Nesse ínterim, a visitada acertou com o propalador que lhe fizesse uma visita, ao que ele, de pronto, aceitou. Conheceu dos segredos da carne e passou a frequentar a casa do “Pratão” com maior frequência do que o visitante oficial. Não deu outra: fora denunciado ao carreiro, como um estorvo, inventão de infuca. mas, como tinha a lingua solta, o patrão lhe propôs acordão certeiro: 

- Cabra da peste, cuma é que tu se astreve a fazer infuca, quando era tu quem estava vindo dormir na minha casa? Tá ficando doido, é? Saiu a tua avó, peste?

- Não, Pratão! Eu só venho butar sentido, pra mode ver se é divera o assunto que ispaiaro. Dona Santinha é uma Santa. Ninguém está de asa aberta po lado dela, não!

- Ah! é tu que é adiantado demais! Fala o que num vê e larga misera no mundo. Pudia de dá um moio... mas num sou home de fazer isso. Já que tu é muito butado, estouvado até dizer chega, quero que venha morar aqui em casa, pra zelar de Santinha, emente eu estiver de viagem...

- Pur eu, eu aceito, Pratão... mais, D. Santinha haverá de querer um estranho em sua casa, de noite?

- Deixe de ser corno, Estêvão! Apois, foi ela quem me deu ideia! Disse que tu é estouvado demais da conta. Quando tu está pu perto, ela sente um aliveio, cuma se tivesse nas nuves...

- oxente! E ela gosta deu assim, e? Arre! Eu se mudo hoje mermo. 

Daquele dia em diante, Santinha nunca mais levou fama de traíra, nem o carreiro de desonrado. E tudo isso, graças ao estouvamento de Estêvão, cuja sina mudara por completo, até que surja alguém com o mesmo timbre. Como parte do trato, deveria se ausentar da casa de Santinha durante uma boca da noite por semana... Eita Estêvão Estouvado!  

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