Os perigos das leituras. (por Antonio Samarone)

Antonio Samarone, 19 de Julho, 2023


 

“Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão/ Uma parte de mim pesa, pondera, outra parte delira/ Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém, fundo sem fundo,” – Ferreira Gullar

Germano, natural da Cajaíba, em Itabaiana, 38 anos, bacharel em direito pela Useal, nunca trespassou às portas dos fóruns. Quando perguntado se pretende trabalhar, a resposta é a mesma: estou estudando para concursos.

As dificuldades de Germano na profissão de Rui Barbosa, não se devem a preguiça ou a falta de leituras. Não! Ele lê sofregamente. Madruga lendo! Durante a pandemia, devorou a obra completa de Olavo de Carvalho.

Talvez o mercado do direito esteja saturado. As causas são lentas e demoradas.

Depois das leituras do confinamento pandêmico, passou a acreditar firmemente numa ameaça do credo vermelho, em Itabaiana.

Logo em Itabaiana!

Uma crença bizarra e inabalável, sem evidências. Não se fala em comunismo na cidade serrana. Não se sabe direito nem do que se trata. O último ceboleiro crente no bolchevismo, faleceu há trinta anos, nos braços da igreja romana.

Entretanto, para Germano, a ameaça vermelha é o seu moinho de vento. O bom combate.

De tanto ler Olavo e pouco dormir, se dissecou de tal maneira o cérebro, que ele perdeu o juízo. Sempre soube dessa verdade, Germano não foi o primeiro.

O engenhoso bacharel, influenciado por más companhias e certas leituras, participou ativamente do 08 de janeiro. Existem imagens dele quebrando o urinol (penico) do palácio. Um artefato do século XIX, trazido pela família real.

A vida de Germano mudou, depois do retorno de Brasília. Um pormenor: ele escapou, fugindo a pé até a cidade de Valparaíso de Goiás, e lá, pegou carona no caminhão de Brasilino do Volta.

No retorno, ele queimou todos os livros de Olavo. Desconstruindo as provas. Deixou a barba crescer, raspou a cabeça, eliminou os banhos, a exposição ao sol e suspendeu os relacionamentos. Está irreconhecível, calado e ressentido.

Um psiquiatra local, recém-formado nesses cursos à distância, acredita que Germano padece de um “transtorno delirante persecutório”. Esse médicos noviços querem patologizar a vida. Eu acho um equívoco do colega, Germano não é um doente. Apenas, tem pouco sal na moleira. É um fenômeno coletivo.

Eu não acredito em psiquiatra que nunca leu Freud.

Germano, depois do 08 de janeiro, é outro. Só a crença na ameaça vermelha continua inalterada. Ele continua vendo conspiração em toda parte, em todas as coisa, em todos os gestos.

Germano, não se pode esconder, ficou assustado com as ameaças de Xandão, reais ou imaginárias. Mudou a estratégia de combate.

No início, chegou a procurar um reitor famoso pedindo proteção. Foi escorraçado! O sábio reitor sabe que a hora é de recuos e dissimulações.

Germano, sentindo-se abandonado, deixou a política. Na verdade, ele nunca foi um militante. Foi um breve surto de porta de quartel.

Deus não desampara ninguém. Germano passou a acreditar que só as graças e a misericórdia divina podem afastar a ameaça vermelha.

A vida sempre é reinventada.

Hoje, ele se encontra recluso, orando e jejuando, numa pequena propriedade da família, nas grotas profundas da grande Serra.

A misericórdia de Deus nunca tarda.

Antonio Samarone. (médico sanitarista)

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